Sobrevivi ao meu primeiro Lés-a-Lés










Um pequeno relato da edição 2008 do Portugal Lés-a-Lés, realizada entre 22 e 24 de Maio, entre Bragança e Sagres e na qual participei pela primeira vez.



1ª Etapa – A técnica, as curvas, o verde
Saída às 7 da manhã, num dia que se adivinhava complicado. A informação meteorológica não era animadora, o céu estava cinzento mas seco. A primeira curva debaixo do arco da muralha da Cidadela de Bragança era uma primeira pista do percurso que nos estava destinado.

Partimos. O road book dizia “ grandes curvas para acordar” … e que acordar. Um zig-zag por entre a paisagem fresca e verde, com cheiro a terra molhada até Outeiro, seguimos para Carção e continuámos em direcção ao pequeno-almoço. Chegados a Algoso esperava-nos um corredor de pastelinhos e muitas calorias, já a prever o desgaste da viagem.


Visita por entre as ruas de empedrado da Vila e apanhamos a N219, estrada larga com bom piso. Mas não, não se habituem pois ali à frente há uma cortada para um caminho de terra, a descer muito, muito, até ao rio Angueira onde na ponte velha nos esperava o primeiro pica. Um vale fabuloso, onde serpenteava o rio e onde fizemos umas fotos, sob um sol morno e ainda com as remelas ao canto do olho. A subida era a pique, com curvas apertadas, terra e pedrinhas para chegar à ponte nova suspensa entre dois montes.




Voltámos à estrada mais uns kilometros até um desvio sem nome para Azinhoso, uma pequena aldeia transmontana de ruas estreitas, casas de pedra e ruas de pedra, onde procuramos um pelourinho escondido para picar de novo o cartão. Começo a pensar se vamos passar em todas as ruas de empedrado de todas as aldeias e vilas transmontanas. Por acaso não chove, mas se ela começa a cair fica uma sopa de pedra molhada bem boa para as duas rodas resvalarem.

Mogadouro, Mazouco, Freixo-de-Espada-à-Cinta, mais povoações que atravessámos pela manhã, num andamento cheio de energia, muitas curvas, estradas estreitas e estradas menos estreitas, até ao Miradouro de Penedo Durão, sob um sol tímido. A paisagem era imensa, esmagadora, sem fim. O Douro Internacional estendia-se aos nossos pés. Depois de mais uns kms, com uma prova de terra para quebrar a monotonia do alcatrão, continuávamos lá em cima, bem em cima do mundo.



Começámos a descer por entre o nada, por entre tudo, por entre uma vista fabulosa que convidava a parar e a respirar. Lá em baixo o rio era um risco azul a cortar o verde dos os montes à volta. Nem o céu cinzento conseguia tirar a beleza da vista para lá do horizonte. Aquela estradinha era um mimo. Estreitinha e sinuosa, passeou-nos pela serra, desceu junto ao rio e subiu de novo. As motos eram muitas. Olhava para trás e via motos, olhava para a frente e via motos. Parecia um carreirinho de formigas verdes a serpentear por aquela paisagem.

Mais curvas até Barca de Alva e mais curvas até Figueira de Castelo Rodrigo, o passeio era um sem fim de curvas, de estradas sinuosas, de paisagens verdes. O pessoal fez o gostinho ao dedo, ao punho, ao pneu. Era curvar até ao limite, bom piso a convidar à vertigem até roçar com as malas no chão. No meio da Serra da Marofa parámos junto ao primo do Cristo-Rei, mais uma vista deslumbrante e umas águas para enganar o estômago. O tempo está a aguentar, entremeia sol com nuvens mas água só mesmo nas garrafitas. Está quase na hora do almoço e ainda temos uns 20 km até ao almoço. Parece pouco mas naquelas estraditas é “boé-da-longe”.

No Castelo de Pinhel um carrossel de ruinhas, estreitinhas, empedrado claro e por vezes nem isso, a convidar ao tombo, convite que alguns aceitaram e outros estiveram quase. Chegados ao almoço, numa adega cooperativa onde o vinho era escasso mas o pão era muito, o porco no espeto passeava em enormes travessas. A fome apertava, comia-se tudo seja lá como for.

Se a manhã foi pacífica, com o céu seco e muita adrenalina nas curvas, a tarde nem por isso. Para sobremesa prolongada, a chuva caiu sem parar. A estrada continuava sinuosa, o piso molhado, foi um passar de povoações num andamento vertiginoso, com pressa de ir andando. Vila Franca das Naves ficou para trás, em Celorico da Beira equilibramo-nos em mais uma ruas estreitas e empedradas, casas em pedra, muros em pedra. Apanhámos a estrada da beira com mais curvas largas que não puderam ser feitas a fundo pois a chuva não deixou.

Uns km à frente, o lanche acenava. A chuva deu-nos tréguas e parámos num excelente parque em S. Gião. O rio cantarolava, a lama ria-se dos aventureiros e a escada era de rampa. Escorregamos por ali abaixo.

Depois de 8 horas intermináveis, o dia de trabalho tinha acabado para mim. Estava com medo do dia seguinte, diziam que seria bem violento, já estava cansada e decidi apanhar uma boleia directa para Coimbra. Chega de chuva, chega de vertigem, quero ver o outro lado do Lés a Lés. Estrada da beira de novo rumo a Coimbra. Consegui ir dar em frente do Portugal dos Pequeninos e segui o road book até à chegada. Cheguei antes de todos.

Os voluntários do final da etapa olharam para mim com surpresa. A equipa zero ainda não tinha chegado. Aconteceu alguma coisa? Não, só fiz batota. Estacionada em frente ao palanque fiquei a mirar os preparativos para receber os participantes. Adivinhava-se o nervoso da chegada, o pessoal vestia os coletes da organização, alinhavam as grades, as meninas preparavam os sacos do protector solar, todos olhavam para o relógio. As pessoas passavam e perguntavam o que se ia passar, paravam a ver aquela azáfama, ficavam por ali.

Ao fundo da rua apareceu a equipa zero. Subiu ao palanque. Vinham cansados, molhados, desgrenhados mas sorridentes. Mal tiraram os capacetes cumprimentaram todos, abraçaram-se, com aquele brilho de missão cumprida, alegria da chegada e satisfação de dever cumprido. Estavam eufóricos, até aqui correu tudo bem, o Lés a Lés começa a chegar a qualquer momento.


As motos foram arrumadas, os voluntários posicionaram-se para indicar o estacionamento, a polícia estava a postos para parar o trânsito, a aparelhagem sonora foi ligada, o microfone testado. Depois daqueles km de reconhecimento, de distribuição dos alicates-pica-cartões, de ansiedade para saber o que se passava lá atrás, se a coluna de 900 motos vinha intacta sem percalços, aqueles resistentes preparavam-se para receber a comitiva.

E as motos começaram a chegar. Pouco a pouco, sozinhos, dois a dois ou em grupo, chegam motos, mais motos, o sol começa a descer, vêem-se faróis, muitos faróis, alinhados num corredor à espera de subir ao palanque. A organização dá as boas vindas a todos, entrevista todos, conhece todos, anima a rua. A equipa zero reveza-se para acarinhar os aventureiros, umas boas horas na recepção, num último esforço para acabar o dia em grande. Aquelas alminhas ficaram ali um bom par de horas, sempre a falar, a cumprimentar, a fazer as honras da casa, sujos e cansados.

O jantar estava à espera. Subi até à esplanada montada no exterior do estádio e fui presenteada com um arroz cru de feijão e uns bifinhos de porco no espeto. Pra variar. Só pensava que ainda tinha de ir até ao Hotel e já não tinha forças. Aterrei na cama. Dormi mal, aquele sono leve, leve, que se dá por tudo, que se ouve tudo, não sei se estou acordada se estou a sonhar.

2ª Etapa – A Prova de resistência
Partida de Coimbra. Cedo. Muito cedo. Ainda a dormir apresentámo-nos no palanque. Lá fomos para umas voltas à cidade. Pois é. Pensavam que Coimbra era uma cidade civilizada. Enganam-se. Tem ruas empedradas. Há pois tem! E vamos lá percorre-las para não perder a prática.

Saímos para o Portugal perdido, numa madrugada escura, a subir a serra, a dominar uma vista de sombras intermináveis, a ver uns farrapos de nevoeiro aqui e ali por entre os montes verdes escuros, com o frio a ameaçar o dia. O prognóstico era desanimador, esperava-se chuva para o dia todo.


E lá vamos nós, rumo a Alcabideque, onde a seguir à Torre procurámos o único pedaço de estrada que o presidente da junta se esqueceu de alcatroar. E era a subir, a subir, a subir e estava cheio de lama e chovia a potes. 500 metros a subir só para apanhar a estrada principal.


O sol nascia mas não era sobre nós. Talvez noutro país distante pois só víamos cinzento, água e mais água, o céu desabava, não se via nada só chuva e mais chuva, forte e pesada. Debaixo daquele dilúvio seguimos em direcção a Rabaçal, passámos pelo largo principal de Ansião, desta vez não é empedrado mas fazemos questão de passar pelas piores ruas que há pelo caminho. Rumo a Freixianda, acompanhados por um arco-íris completo, repleto de cores que não eram suficientes para dar alento à romaria da chuva, lá fomos em direcção a Ourém.


As nuvens eram negras, lá ao longe parecia que o céu estava a despontar, rodámos sempre em frente rumo ao sol que também rodava para longe de nós. A estrada não se via, a torrente de água não acabava.



Chegados a Ourém, a subida para o Castelo fazia-se por uma excelente estradinha, inclinada a 94 graus, piso empedrado (claro), com curvas em U e bem molhadinha daquela chuvada que teimava em não parar. Valeu-nos o café e os pastelinhos do pequeno-almoço. Se a subida foi difícil, estávamos com sorte pois a descida foi pior. Uma rampa em alcatrão, com cinco centímetros de largura, a descer a pique, com curvas em cotovelo, em W, em nó. Um pavor.



Estrada de novo para a continuação da prova de natação. Riachos, Golegã, Chamusca, Montargil, Mora, terras que passamos à pressa, em direcção aqueles tufos fofos e brancos que se viam lá ao longe no céu. Paragem para um cafezito e começam as apostas. Depois do menu de ontem, concentração em Brotas, porco no espeto outra vez!

Fomos enganados. Afinal o porco também fugiu da chuva. Depois daquela maratona esperava-nos um belo rancho, debaixo de uma enorme tenda às riscas que naquele momento pareceu um palacete, seco, sem água.

Barriga cheia, energias recuperadas, estrada com eles. A chuva deu tréguas, as planícies alentejanas estavam à espera. Rodámos punho para recuperar o atraso da manhã, o sol começou a aquecer e secou os fatos, ajudou o ritmo com que cruzámos as rectas intermináveis de asfalto direito, de horizonte direito, salpicado de sobreiros. Há que aproveitar a monotonia da estepe alentejana para descansar. Montemor-o-Novo, Alcáçovas, Grândola, terras acolhedoras, muita gente à beira da estrada, incrédula com tantas motos a passar, acenavam, as crianças pulavam, os aventureiros apitavam e cumprimentavam. A festa ia em direcção ao sul.



Agora é que é. Agora volta a excitação do piso difícil, os anunciados estradões. Uma auto-estrada de terra batida, em linha recta, poucos buracos, muito pó, meia dúzia de curvas. Tudo acelerava por ali fora, uns a medo, outros sem medo, motas trail, motos pesadas, vespas, side-cars, uns de pé, outros sem pé, o festim mais desejado e mais temido do percurso. Passámos por montes, por pares de casario, quem disse que o Alentejo é quase desabitado engana-se. A população estava toda na estrada, Só faltavam as colchas à janela para saudar a procissão das motos.


Depois de um pequeno lanche, numa povoação perdida na pradaria, seguiu-se a tradicional passagem do rio a vau. A malta toda contente. Aquilo até nem foi difícil, a altura da água era razoável, até se conseguiam ver os sapinhos. Estão-se a rir ….. então tomem lá …… Luta na lama. Um bocado de estrada bem pegajosa, fofa e gelatinosa, cheia de pocinhas para brincar. Programa para adultos com kit de unhas. As motos escorregavam, resvalavam, andavam de lado, atolavam, afogavam, passava um, caíam dez.




Em Odemira paragem para atestar. A fila era grande e também era grande a fila para dar um duche às motos e às botas, enlameadas até ao joelho, alguns enlameados até ao pescoço. Mas a adrenalina não acabou aqui. Vêem aí umas curvitas de cortar a respiração, serra de Monchique acima, serra abaixo, agora não chove, vingança na estrada. Curvas apertadas, orelha no chão até à civilização turística algarvia.


Paragem para cumprimentar o patrocinador, filinha para picar cartão, quem veio depressa perdeu a pressa, picava-se por número, compasso de espera para ordenar a caravana.


Num Algarve que já não existe, passagem por simpáticas terreolas, chegámos ao mar, um pôr-do-sol fantástico, uma estrada paralela à civilização e Sagres à vista.


Já anoiteceu mas era grande a iluminação do local de chegada, com tantos faróis de motos alinhadas para subir ao palanque e, finalmente, terminar a grande aventura. As apostas recomeçaram. Local descampado frente à fortaleza, ausência de infra estruturas para cozinhar, cá vem o porco no espeto, desta vez não me engano. Pois é, engano mesmo. Os tachos da feijoada estavam à espera.


Diziam as simpáticas senhoras – menina, olhe que o arroz já está frio. Mas se regar com o caldo da feijoada fica melhor. Aceitei a sugestão assim como o leite-creme da sobremesa. Naquela altura que se dane a dieta, preciso mesmo é de calorias. Depois de começar às 6:30H da manhã, fazer aquele ror de km, às 9 da noite já estava por tudo. E estava mesmo exausta, dormente, esfomeada e, sobretudo, feliz. Feliz por ter chegado ao fim, feliz por ter amigos que me apoiaram, feliz por ter vivido aquela aventura.


Esta é apenas uma pequena história do meu primeiro Lés-a-Lés. Há muitas mais histórias. Este ano são, certamente, cerca de mil histórias acontecidas ou testemunhadas por mil aventureiros. Cada um tem as suas histórias para contar, nas conversas de amigos, nos encontros, cada vez que se falar nesta epopeia. São essas experiências que alimentam as recordações dos que lá foram, do imaginário dos que nunca foram, da expectativa da próxima aventura, no próximo ano.











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