É estranho que a viagem que eu sempre quis fazer acabou sempre para segundo plano. Aparecia sempre um desafio irrecusável. Outras andanças por África e pela Ásia e a Europa a ficar para trás. Agora com a turbulência das religiões, anda tudo às avessas … e eu ando finalmente a direito. Direitinha à Escócia, vou descobrir as paisagens fabulosas que já me cansei de ver na Internet.
Os preparativos são fáceis … enfiar umas camisolas quentes na mala, o cartão das pousadas de juventude e o seguro europeu de assistência médica. Até conduzir do lado errado da estrada vai ser canja depois do mestrado em condução que tirei na Índia. Nem sequer vou tremer e suar com estradas de terra que eu odeio e só faço porque não há outras … alcatrão sempre. Yuppiiieeee.
O plano é ambicioso. Subir até Edimburgo, subir ainda mais até à costa Norte pelo meio das Highlands, depois começar a descer pela costa Oeste, dar um pulinho à Ilha de Man – claro que não podia perder as TT Races – sonho em ir lá desde que comecei a andar de moto e, por fim, espreitar o País de Gales.
Quando se começa uma viagem o entusiasmo é enorme. A estrada está no princípio, é nossa. Pelo caminho, km a km, a cabeça vai limpando, a rotina do dia-a-dia fica para trás. Passo a fronteira para Espanha e já estou em modo ZEN. O mundo está à minha espera, o horizonte não tem limites. Vou andando devagar, a apreciar o vento morno, os cheiros da terra, olhar longe, espírito de férias.
Sexta – 27 Maio 2011
O plano é passar dois dias a vaguear por Espanha e França. Devagar. Acabo o dia em Fromista, uma pequena localidade que faz parte da rota dos Caminhos de Santiago. Depois de me perder, claro.
Lá consegui arranjar alojamento numa pequena residencial. A dona da residencial estava no restaurante a beber copos. Foi comigo mostrar o quarto e desandou outra vez para o restaurante. Residencial vazia, um número de telefone na porta para o caso de me esquecer da chave.
Está tudo doido. Pediram-me 8 euros por um pequeno-almoço. Recusei. Fui a uma pastelaria e pedi um croissant - 1,60 Euros …. Se comer lá dentro mas se trouxer para fora já é apenas 1 euro … vim comer para a rua, claro. Depois fui à mercearia e comprei uma maçã por 35 cêntimos. Pequeno-almoço despachado e com vista para as cegonhas.
Não me consigo livrar das auto-vias. É um tédio andar nelas. Não se passa nada, tudo nos limites de velocidade, a paisagem muito urbana, vilas, cidades, fábricas, zonas industriais. Até os campos estão repletos de postes de electricidade. Nem dá vontade de olhar. Um tédio. Bem olho para o mapa a ver se me consigo escapar, mas a alternativa é uma teia de estradas, para cima e para baixo, as nacionais não vão na direcção que eu quero. As auto-estradas são mesmo um aborrecimento! A única coisa que anima a viagem é contar os insectos que esbarram violentamente contra o capacete e escorrem pela viseira.
Lá vou olhando a paisagem e o que se passa à volta da auto-via. Entre Vitória e Irun reparo num pormenor engraçado. Por todo o lado havia CLUBs com nomes sonantes, tipo Las Vegas – um restaurante com estacionamento cheio de camiões e Club ao lado. Pensão e Club ao lado. No meio do nada, à beira da estrada, Club. É a região dos Clubs.
O mais engraçado é que sem fronteiras já nem sei onde estou. Numa rotunda tenho a sensação que me enganei. Paro junto a um lago, perto de umas casas e fico a olhar para o mapa. Passou um transeunte e perguntei .. olá, puedes aiudar? … o tipo fica a olhar para mim ….. Pardon? … raios, já estou em França, nem dei por isso, tal foi a confusão de trânsito. Puxei do meu francês da escola e lá me entendi. Pois, afinal era na outra à direita e finalmente entrava na nacional, ao longo da costa. No mapa a estrada tinha bom ar, tipo rural, junto às praias. Grande engano. Até parecia que estava no Algarve, só com prédios mais baixos. Zona de veraneio, malta na praia, um frio de rachar.
Mas agora não vale a pena voltar para trás. Bordéus é já ali à frente. Paro numa pequena vila, com ar de postal ilustrado, já uns bons km mais acima. Está a anoitecer e tenho receio de não encontrar alojamento. Corro todos os hotéis e escolho o mais barato. Tem um restaurante por baixo e cheira a “moules” (amêijoas) …… hummmm … olho para a ementa e engasgo-me com o preço. Fico pelo prato do dia.
Isto de ter malas novas é um luxo. Como tinha espaço, trouxe roupa … a mais. 3 t-shirts de secagem rápida mais 4 de algodão … e são 4 a mais. Ainda só sai há 2 dias e o raio das 4 t-shirts já me pesam o arrependimento. Chego à noite, lavo a camisolita de secagem rápida, de manhã está pronta a vestir, a cheirar a sabão azul e branco, parece a aldeia da roupa branca. Ainda vou largar as t-shirts de algodão por aí.
Dom 29 Maio 2011
Depois da desilusão da costa oeste francesa, estava com pressa de rumar a Norte. Até Saint Malo, pelo interior da Bretanha, a estrada é monótona, bem diferente da costa que eu conheço de outras viagens. Paisagem verde, paisagem amarela. Pequenas vilas, uma torre de igreja. É Domingo, está tudo fechado. Nem vivalma. Estou a ficar sem gasolina. Postos fechados, vila após vila, a reserva a piscar.
Finalmente uma patisserie aberta e gente à porta. Pergunto por um posto de abastecimento. Indicam-me um lá atrás - Está fechado, disse eu. Não, abasteces com cartão. E agora? Não sei se o meu cartão dá na bomba … um casal muito simpático oferece-se para ir comigo. Usou o cartão e dou-lhe o dinheiro. Fixe. Ainda ficamos um bom bocado à conversa.
Chego ao terminal dos Ferrys às 9 da noite. Ninguém à vista, tudo deserto, o terminal parece fechado. Mesmo assim tento a entrada, pelo menos vejo a hora em que abre amanhã. Afinal as portas automáticas abrem. O único balcão aberto é o da Condor Ferrys e lá vou eu perguntar os horários. Tinha saído um barco há 1 hora atrás para Portsmouth. Raios, falhei por pouco. E o pior é que o próximo é só amanhã à noite.
Faço uma cara tão desanimada que o funcionário me pergunta de onde venho. De Lisboa, directa aqui. Arregalou os olhos – grande viagem, disse ele. Vou ver o que se pode fazer. Afinal há uma alternativa. Consigo uma viagem a saltitar em dois ferrys e a passar pelas duas ilhas ao largo da costa – Jersey e Guernsey, com chegada a Weymouth às 3 da tarde. Fixe, vou fazer um cruzeiro pelo canal.
Depois é a odisseia de arranjar alojamento. St Malo é uma cidadela entre muros altos, e estradas empedradas. Com a chuva miudinha a cair, adivinho umas escorregadelas ali dentro, numa ruela qualquer. Não arrisco a entrar. Vou andando ao longo da enorme muralha até à parte nova da cidade. Muitos hotéis e muito caros. Zona turística, terminal de barcos, fora de orçamento, claro.
Lá encontro um hotel que me pede apenas 25 euros. Sem chuveiro, apenas um lavatório no quarto. Para tomar duche são mais 3 euros. O quarto é no 3º andar e o chuveiro no 1º andar, uma escada estreita e íngreme. São 10 horas da noite, tenho de me levantar às 5 da manhã. Serve, pelo menos é limpo.
Depois outra cruzada para encontrar jantar. Tenho o estômago colado às costas e tonturas de fome e de quase 700 km feitos. O único restaurante aberto tem um menu com preços de ricos. A fome falou mais alto.
Um empregado simpático trás a carta mas eu não tenho os óculos. Pareço uma anormal com o menu colado ao nariz. Lá percebo um prato que custa menos de 10 euros, mas não sei o que é. Comida de certeza. Pergunto o que é, fico na mesma. Arrisco.
Divina surpresa. Uma salada fantástica, com atum fresco e salmão. Era mesmo isto. Devoro a salada, um chá de menta e hotel. Uma maratona, escada abaixo, escada acima, banho e cama. Amanhã já vou pôr o pé em terras de sua Majestade.
Seg 30 Maio 2011
Libras, milhas, jardas e pés, bem-vindo ao país do contrário. Conduz-se pela esquerda, a estrutura da língua é inversa, é tudo diferente. O primeiro contacto com o país do contrário foi na ilha de Jersey, a 1ª paragem do ferry, às 8 da manhã.
Tenho 1 hora para o transbordo e aproveito para dar uma volta pela Ilha. Não consigo passar da marginal da baía de St Helier, estou sem gasolina. È muito cedo e está tudo fechado. Vou a um posto de abastecimento e peço para abastecer. Só abre às nove, diz o empregado com voz aborrecida, continuando a arrumar latas de óleo. Nem vira a cara. Peço novamente, olha para mim e para a moto. Já estava a desistir quando ouço falar português: És Portuguesa? Abro a boca de espanto. Afinal falava português, é casado com uma portuguesa e conhece bem Portugal. O autocolante com o “P” colado nas malas salvou-me. Abriu as bombas, abasteci e descobri que a gasolina é bem mais barata aqui.
A 2ª paragem na Ilha de Guernsey é só para ver passageiros a desembarcar. Finalmente, às 3 da tarde chego a Weymouth. Logo para começar bem, 1 hora para sair da cidade. É feriado, está tudo na rua, uma fila de carros enorme.
Tenho dois dias para chegar a Edimburgo. Decido fazer passeio até lá. Uns velhotes no barco recomendaram uma visita a Salisbury, com uma catedral muito bonita. Lá vou eu de mapa na mão a pensar que é fácil. Grande engano, grande desilusão. O sul de Inglaterra é um emaranhado de estradas e auto-estradas.
Não percebo nada das indicações, descubro que quase tenho de decorar o mapa para me orientar. Pergunto por vilas ou cidades e ninguém me sabe dizer.
Tal como a condução é pela esquerda, até saber direcções tem uma característica própria. Depois de andar perdida por um par de horas, a perguntar direcções, percebi que geografia para os ingleses é coisa complicada. Por um lado, as placas apenas dizem a localidade logo a seguir. Não indicam a cidade maior da direcção. Perguntar a um inglês é ficar na mesma. Não conhecem. Mas finalmente, descobri que se perguntar o número da estrada todos sabem. Que estranho. Nomes de localidades, zero. Números, tudo.
O truque é saber o número da estrada, depois saber os pontos cardeais. M3 Norte ou Sul, A35 Oeste ou Este. Eu que nunca me preocupei em saber o Este e o Oeste, ando mesmo baralhada com as agulhas ao contrário e ainda tenho de saber para que lado vai a estrada.
Sexta – 27 Maio 2011
Lá consegui arranjar alojamento numa pequena residencial. A dona da residencial estava no restaurante a beber copos. Foi comigo mostrar o quarto e desandou outra vez para o restaurante. Residencial vazia, um número de telefone na porta para o caso de me esquecer da chave.
Está tudo doido. Pediram-me 8 euros por um pequeno-almoço. Recusei. Fui a uma pastelaria e pedi um croissant - 1,60 Euros …. Se comer lá dentro mas se trouxer para fora já é apenas 1 euro … vim comer para a rua, claro. Depois fui à mercearia e comprei uma maçã por 35 cêntimos. Pequeno-almoço despachado e com vista para as cegonhas.
Não me consigo livrar das auto-vias. É um tédio andar nelas. Não se passa nada, tudo nos limites de velocidade, a paisagem muito urbana, vilas, cidades, fábricas, zonas industriais. Até os campos estão repletos de postes de electricidade. Nem dá vontade de olhar. Um tédio. Bem olho para o mapa a ver se me consigo escapar, mas a alternativa é uma teia de estradas, para cima e para baixo, as nacionais não vão na direcção que eu quero. As auto-estradas são mesmo um aborrecimento! A única coisa que anima a viagem é contar os insectos que esbarram violentamente contra o capacete e escorrem pela viseira.
Lá vou olhando a paisagem e o que se passa à volta da auto-via. Entre Vitória e Irun reparo num pormenor engraçado. Por todo o lado havia CLUBs com nomes sonantes, tipo Las Vegas – um restaurante com estacionamento cheio de camiões e Club ao lado. Pensão e Club ao lado. No meio do nada, à beira da estrada, Club. É a região dos Clubs.
O mais engraçado é que sem fronteiras já nem sei onde estou. Numa rotunda tenho a sensação que me enganei. Paro junto a um lago, perto de umas casas e fico a olhar para o mapa. Passou um transeunte e perguntei .. olá, puedes aiudar? … o tipo fica a olhar para mim ….. Pardon? … raios, já estou em França, nem dei por isso, tal foi a confusão de trânsito. Puxei do meu francês da escola e lá me entendi. Pois, afinal era na outra à direita e finalmente entrava na nacional, ao longo da costa. No mapa a estrada tinha bom ar, tipo rural, junto às praias. Grande engano. Até parecia que estava no Algarve, só com prédios mais baixos. Zona de veraneio, malta na praia, um frio de rachar.
Mas agora não vale a pena voltar para trás. Bordéus é já ali à frente. Paro numa pequena vila, com ar de postal ilustrado, já uns bons km mais acima. Está a anoitecer e tenho receio de não encontrar alojamento. Corro todos os hotéis e escolho o mais barato. Tem um restaurante por baixo e cheira a “moules” (amêijoas) …… hummmm … olho para a ementa e engasgo-me com o preço. Fico pelo prato do dia.
Isto de ter malas novas é um luxo. Como tinha espaço, trouxe roupa … a mais. 3 t-shirts de secagem rápida mais 4 de algodão … e são 4 a mais. Ainda só sai há 2 dias e o raio das 4 t-shirts já me pesam o arrependimento. Chego à noite, lavo a camisolita de secagem rápida, de manhã está pronta a vestir, a cheirar a sabão azul e branco, parece a aldeia da roupa branca. Ainda vou largar as t-shirts de algodão por aí.
Dom 29 Maio 2011
Depois da desilusão da costa oeste francesa, estava com pressa de rumar a Norte. Até Saint Malo, pelo interior da Bretanha, a estrada é monótona, bem diferente da costa que eu conheço de outras viagens. Paisagem verde, paisagem amarela. Pequenas vilas, uma torre de igreja. É Domingo, está tudo fechado. Nem vivalma. Estou a ficar sem gasolina. Postos fechados, vila após vila, a reserva a piscar.
Finalmente uma patisserie aberta e gente à porta. Pergunto por um posto de abastecimento. Indicam-me um lá atrás - Está fechado, disse eu. Não, abasteces com cartão. E agora? Não sei se o meu cartão dá na bomba … um casal muito simpático oferece-se para ir comigo. Usou o cartão e dou-lhe o dinheiro. Fixe. Ainda ficamos um bom bocado à conversa.
Chego ao terminal dos Ferrys às 9 da noite. Ninguém à vista, tudo deserto, o terminal parece fechado. Mesmo assim tento a entrada, pelo menos vejo a hora em que abre amanhã. Afinal as portas automáticas abrem. O único balcão aberto é o da Condor Ferrys e lá vou eu perguntar os horários. Tinha saído um barco há 1 hora atrás para Portsmouth. Raios, falhei por pouco. E o pior é que o próximo é só amanhã à noite.
Faço uma cara tão desanimada que o funcionário me pergunta de onde venho. De Lisboa, directa aqui. Arregalou os olhos – grande viagem, disse ele. Vou ver o que se pode fazer. Afinal há uma alternativa. Consigo uma viagem a saltitar em dois ferrys e a passar pelas duas ilhas ao largo da costa – Jersey e Guernsey, com chegada a Weymouth às 3 da tarde. Fixe, vou fazer um cruzeiro pelo canal.
Depois é a odisseia de arranjar alojamento. St Malo é uma cidadela entre muros altos, e estradas empedradas. Com a chuva miudinha a cair, adivinho umas escorregadelas ali dentro, numa ruela qualquer. Não arrisco a entrar. Vou andando ao longo da enorme muralha até à parte nova da cidade. Muitos hotéis e muito caros. Zona turística, terminal de barcos, fora de orçamento, claro.
Lá encontro um hotel que me pede apenas 25 euros. Sem chuveiro, apenas um lavatório no quarto. Para tomar duche são mais 3 euros. O quarto é no 3º andar e o chuveiro no 1º andar, uma escada estreita e íngreme. São 10 horas da noite, tenho de me levantar às 5 da manhã. Serve, pelo menos é limpo.
Depois outra cruzada para encontrar jantar. Tenho o estômago colado às costas e tonturas de fome e de quase 700 km feitos. O único restaurante aberto tem um menu com preços de ricos. A fome falou mais alto.
Um empregado simpático trás a carta mas eu não tenho os óculos. Pareço uma anormal com o menu colado ao nariz. Lá percebo um prato que custa menos de 10 euros, mas não sei o que é. Comida de certeza. Pergunto o que é, fico na mesma. Arrisco.
Divina surpresa. Uma salada fantástica, com atum fresco e salmão. Era mesmo isto. Devoro a salada, um chá de menta e hotel. Uma maratona, escada abaixo, escada acima, banho e cama. Amanhã já vou pôr o pé em terras de sua Majestade.
Seg 30 Maio 2011
Libras, milhas, jardas e pés, bem-vindo ao país do contrário. Conduz-se pela esquerda, a estrutura da língua é inversa, é tudo diferente. O primeiro contacto com o país do contrário foi na ilha de Jersey, a 1ª paragem do ferry, às 8 da manhã.
Tenho 1 hora para o transbordo e aproveito para dar uma volta pela Ilha. Não consigo passar da marginal da baía de St Helier, estou sem gasolina. È muito cedo e está tudo fechado. Vou a um posto de abastecimento e peço para abastecer. Só abre às nove, diz o empregado com voz aborrecida, continuando a arrumar latas de óleo. Nem vira a cara. Peço novamente, olha para mim e para a moto. Já estava a desistir quando ouço falar português: És Portuguesa? Abro a boca de espanto. Afinal falava português, é casado com uma portuguesa e conhece bem Portugal. O autocolante com o “P” colado nas malas salvou-me. Abriu as bombas, abasteci e descobri que a gasolina é bem mais barata aqui.
A 2ª paragem na Ilha de Guernsey é só para ver passageiros a desembarcar. Finalmente, às 3 da tarde chego a Weymouth. Logo para começar bem, 1 hora para sair da cidade. É feriado, está tudo na rua, uma fila de carros enorme.
Tenho dois dias para chegar a Edimburgo. Decido fazer passeio até lá. Uns velhotes no barco recomendaram uma visita a Salisbury, com uma catedral muito bonita. Lá vou eu de mapa na mão a pensar que é fácil. Grande engano, grande desilusão. O sul de Inglaterra é um emaranhado de estradas e auto-estradas.
Não percebo nada das indicações, descubro que quase tenho de decorar o mapa para me orientar. Pergunto por vilas ou cidades e ninguém me sabe dizer.
Tal como a condução é pela esquerda, até saber direcções tem uma característica própria. Depois de andar perdida por um par de horas, a perguntar direcções, percebi que geografia para os ingleses é coisa complicada. Por um lado, as placas apenas dizem a localidade logo a seguir. Não indicam a cidade maior da direcção. Perguntar a um inglês é ficar na mesma. Não conhecem. Mas finalmente, descobri que se perguntar o número da estrada todos sabem. Que estranho. Nomes de localidades, zero. Números, tudo.
O truque é saber o número da estrada, depois saber os pontos cardeais. M3 Norte ou Sul, A35 Oeste ou Este. Eu que nunca me preocupei em saber o Este e o Oeste, ando mesmo baralhada com as agulhas ao contrário e ainda tenho de saber para que lado vai a estrada.
Incrível, ninguém me soube dizer o caminho para Salisbury mas quando perguntei pela estrada A338, a resposta foi rápida – apanhas a A35, depois a A31 e então a A338.
Quando chego a Salisbury, não encontro a Catedral nem ninguém nas ruas. Descubro que a catedral está completamente murada e encerra às 5 da tarde. São 7:30h da tarde e o mundo já fechou. É peripécia descobrir alojamento e arranjar jantar. Os B&B estão todos cheios, no único que tem vagas pedem-me 50 libras. Raios. Por esse preço, vou para um Hotel.
No 1º que perguntei tinham quartos. Mas pediram-me os detalhes do cartão de crédito, ou seja, número e código de segurança. Estão doidos, não vou dar essa informação. Qualquer pessoa que apanhe a folha pode usar e abusar das minhas economias. Tento explicar à gerente que não era seguro, que pago adiantado e em dinheiro, mas não consigo. Não fico aqui. Esta malta é maluca. No 2º Hotel, a recepcionista é mais simpática. Tem quarto, pago já e não me exige o nº do cartão. Melhor assim. E até tem um restaurante com muito bom aspecto. Fico por aqui. A primeira experiência neste país foi desgastante. Quero dormir.
Ter, 31 Maio 2011
Saio para a estrada cedinho. Nem tento visitar a cidade. Irritou-me andar perdida ontem. Stonehenge é muito perto, vou lá dar uma espreitadela. Mas perdi o Norte. Esta zona deve ter um magnetismo muito forte. Tão intenso que baralhei os pontos cardeais. Troquei a esquerda e a direita. Engano-me na estrada e acabo num bairro residencial, completamente perdida. Devo ter passado mesmo ao lado do círculo de pedras e nem dei por ele.
Pronto, paragem e escrever num papelinho o número das estradas. A303, depois A34, apanhar a M40, saída 15 ir pela A46, pareço um robot a decorar números e a repeti-los para não me esquecer. Pela 1ª vez na vida sinto falta de um GPS. Já nem volto para trás. Que se lixem as pedras.
Consigo finalmente chegar a Lincoln, pequena cidade que me falaram ser interessante. Tem uma enorme Catedral e o Castelo onde está guardada uma das cópias da Magna Carta.
Estrada de novo, rumo a York, o destino final do dia. Chego ao final da tarde e encontro a pousada de juventude depois de muito perguntar. Os rapazes da recepção são simpáticos. Digo-lhes que venho de Portugal, cara de exausta, arranjam-me um quarto que não tem ninguém. Fixe.
York é uma pequena cidade com um centro histórico preservado, tal e qual era há séculos. Ruas em laje de pedra, casas de traça antiga e … mais uma Catedral.
Qua, 01 Junho 2011
De manhã passeio pela cidade. É cedo e está pouco trânsito. Lá pelas 10h da manhã sigo para a M1. Até Edimburgo é um martírio. Vendaval, chuva e muito frio. Um gelo! O vento lateral empurra a moto. Um pavor. Para compor o ramalhete, a M1 parece uma pista de camiões. Enormes, com atrelados, uma fila de camiões a ultrapassarem mais camiões. Giro é ver as três faixas ocupadas por camiões, andamento lento, uma fila de carros atrás. Já percebo porque na Índia os camiões são os reis da estrada. Influência inglesa.
Qua 01 Junho 2011
Chego a meio da tarde às portas de Edimburgo. É uma grande cidade turística e deve ser cara de certeza. Alojamentos no centro, nem pensar. A pousada de juventude também é no centro mas estou a pensar se há sítio para estacionar a moto. Paro num posto de abastecimento e tiro da mala o meu livrinho de apontamentos. A minha Amiga Susana Beirão (a rasteirinha de Góis) deu-me uns endereços de B&B onde ficou há uns anos quando cá esteve. O desafio é encontrar a morada. Vou perguntar ao funcionário da bomba. Também não sabe. Na loja há um Atlas das estradas, um livro com milhentas folhas e detalhe das estradas e ruas. Folheia aquilo e consegue ver onde é. Afinal é bem perto, até estou na saída certa da auto-estrada. Explico-lhe que ando à procura de alojamento e pergunto se sabe de algum. Diz-me que naquela zona há muitos, mais baratos que na cidade e fica apenas a 10 minutos do centro. Vê o autocolante de Portugal colado na moto e começamos à conversa. Já tinha estado na Madeira e gostou muito. Para me ajudar, agarra no telefone e liga para o B&B que eu tinha apontado. Fala com a senhora, pergunta se tem quartos livres, pergunta o preço. Depois de instalada e mais descansada, vou explorar o centro da cidade.
Esta foi uma conversa difícil. A pronúncia dos escoceses é cerrada, falam para dentro, comem as sílabas. Tenho de pedir para repetir e pensar no sentido das palavras. Faz-me lembrar os açorianos.
Um dia em Edimburgo chega apenas para perceber que não é suficiente. Uma semana, talvez. Esta cidade respira história, cada esquina é um mundo para descobrir, deambular pelas ruas faz querer ir sempre mais longe, ao fundo outro monumento, outra rua interessante, mais arquitectura fantástica. Mesmo com o céu nublado, a cidade tem uma luz própria, reflectida nos edifícios de pedra, cheira a mistério, a fantasmas.

Sigo para Norte. Quando chego ao Blair Castle percebo que já é tarde. Encontro um enorme portão fechado. Fechou às 4:30h. Raios, neste país não se pode aproveitar o dia todo. Estou aborrecida. Continuo caminho e entro no parque natural de Cairngorms. A paisagem é fabulosa. Felizmente não tem hora para fechar.
As pequenas aldeias vão rareando, tudo é verde, cheira a relva cortada. A estrada ora está rodeada de floresta, ora serpenteia junto a um Loch, ora sobe e presenteia-nos com uma vista fantástica, ora corta por um vale esmagado pelas montanhas.
Estou cansada. Decido parar em Aviemore e procurar alojamento. Aqui sei que há uma pousada de juventude, por isso estou safa. À entrada da pequena vila há um parque de campismo e vejo uns bungalows. Vou perguntar, fica ao mesmo preço da pousada e tenho quarto individual. Nem hesito. Fico já por aqui. Mesmo ao lado um restaurante italiano anuncia um buffet de massas e pizzas de comer até querer. Ora aqui está uma boa ideia.
Depois de jantar sento-me lá fora, no silêncio. São 10 horas da noite e o dia ainda dura, um lusco-fusco difuso. Ouve-se apenas o trinar dos pássaros e o movimento dos pinheiros ao som do vento. Nos relvados aparecem coelhos, mexem-se por entre o estacionamento, cheiram os pneus da moto, andam para a frente e para trás, saltitam por ali. No horizonte as montanhas recortadas, escuras. O olhar é cortado por uma aranha que desce por um fio, lentamente, desde o telhado até ao chão e depois desaparece.
Sex 03 Junho 2011
Hoje é dia de tomar decisões. Quanto mais a Norte, mais estreitas são as estradas, retorcidas de curvas, o andamento tem de ser mais lento. Andei meses a planear o itinerário. Mas os planos são apenas planos, intenções de rumo. Tinha pensado ir até John O’Groats, lá bem em cima. Hoje seria um percurso de quase 500 km. Mas já percebi que não é possível. A Susana Beirão avisou-me que as terras altas são desertas, cuidado com os postos de gasolina, não há nada. Estou a pensar se consigo chegar a Ullappol até ao final do dia. Olho para o mapa e decido. Que se lixe John O’Groats. Nunca fui de fazer promessas de passar em sítios que todos dizem que tem de ser. Afinal, John O’Groats é apenas um vilarejo conhecido por ter um porto onde se apanha o Ferry para as Ilhas do Norte. É também o ponto que marca a maior distância que se pode fazer no Reino Unido (John O’Groats – Land’s End). O Lés a Lés cá do sítio. Além disso, todos os ingleses com quem tenho falado pelo caminho me disseram que a costa Oeste é bem mais bonita. Não me está a apetecer fazer mais 200 km de curvas por uma falésia escarpada e batida pelo vento.
Decido atravessar pelo centro das Terras Altas, cortar caminho até Kyle of Tongue. Continuo rumo a Norte por uma paisagem verde e bonita.
Muito trânsito em estradas sem bermas. Não se consegue parar para tirar fotografias. Os carros andam com pressa. E eu ando furiosa, com tanta paisagem para fotografar e nem uma berma para encostar. A estrada acaba num remate alto em cimento ou tem uma elevação em terra e árvores ou num rail, sem espaço para encostar. Parar na borda da estrada é um suicídio com tantos carros a passar e bem depressa. De vez em quando aparecem uns locais próprios para estacionamento, mas rodeados de árvores, com vista para postes telefónicos ou de electricidade, sem visão para o horizonte. A paisagem que eu quero fotografar ficou lá atrás ou está tapada de árvores.
Já estou muito a Norte e as Highlands que procurava, não aparecem. Nada do que tinha imaginado está à vista. Prados verdes, riachos a serpentear pelos vales, montanhas altas despidas de árvores. Com um bocadinho de sorte ainda apareciam uns Clans de escoceses, de saias aos quadrados, montados em cavalos. Para já é bonitinho, mas ainda não me tira a respiração. De repente, a seguir a Lairg, a estrada transforma-se num caminho de uma só via, onde apenas cabe uma viatura (single track road). E a paisagem mudou. E o meu imaginário torna-se realidade.

Apetece fotografar cada metro de paisagem. Paro centenas de vezes nos locais de passagem (passing place). Paisagem de uma beleza agreste, solitária. As casas são raras, não se vê gente. Apenas umas bolas amarelas salpicam os vales, carneiros felpudos. Rolo devagar a beber a imensidão do universo, o sol pinta os vales de verde quente. Numa curva de estrada vejo um enorme veado junto a um riacho, castanho, possante, de hastes enormes. Travo de repente e desligo a moto. Corro em bicos de pés para trás de máquina pronta. Mas já não está lá. Assustou-se com o barulho do motor. Mas a imagem deste animal lindo vai ficar gravada na minha memória.

Cá em cima o espaço é aberto. Respira-se horizonte, sente-se a liberdade do mundo. O único som é do vento. Ao chegar à costa norte levanta-se o vento. Vendaval. Sopra a nortada vinda do mar. Constantemente. A estrada encavalita no cimo dos montes, o vento verga a natureza rasteira, empurra a moto. Ando de lado, com a escarpa e o mar à direita e as montanhas à esquerda. Terra assolada pelo vento, vegetação queimada pelo frio.
Está frio. Muito frio. Tenho as mãos geladas e o nariz vermelho. Felizmente hoje vesti a minha camisola interior térmica, tenho um polar e o blusão com os forros todos e bem apertadinho nos punhos. Mas o frio sente-se na mesma. As nuvens tapam o cume das montanhas, o nevoeiro desce pelas encostas, o vento empurra a humidade do mar, cola-se à roupa, arrepia os ossos. De vez em quando, numa curva de estrada, vê-se ao fundo um raio de sol a iluminar uma encosta virada a oeste.

Em Tongue fico sem bateria na máquina fotográfica. Entro num pequeno Hotel e explico o meu problema. Com um ar muito desolado. O vosso país é fantástico e não posso tirar mais fotos. A simpática senhora deixa pôr a bateria a carregar. Faço uma pausa e almoço uns pães com qualquer coisa dentro que não descobri o que é mas tinham bom aspecto no supermercado. Num recanto do estacionamento, bate o sol e aquece-me a alma. Pronta para mais uns kms até Ullappol.
A pousada de juventude em Ullappol é mesmo frente ao mar. É habitada por caminheiros, homens magros e secos, pele queimada pelo frio. Têm botas enormes e pilhas de mapas de relevo. Falam entusiasmados das paisagens que descobrem, saem de madrugada de mochila às costas e perdem-se nas montanhas.
No Pub da vila servem hambúrgueres, a única coisa com preço razoável. Na mesa do fundo ouço falar português. Três homens a falar alto e a praguejar. Claro que vou meter conversa. São pescadores do mar do Norte, tinham vindo descarregar o barco e aproveitam para beber uma cerveja. Dizem que 90% das tripulações dos barcos dos mares do Norte são portugueses, da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde. A pesca em Portugal acabou e eles imigraram. Falam do frio, das ondas de 8 metros e das saudades de casa.
São 11 horas da noite e o dia ainda vai alto. Às 4:30h da madrugada já é dia. Está frio. Nove graus. Não admira que os carneiros sejam felpudos e as vacas tenham cabelo comprido.
..
Chego a meio da tarde às portas de Edimburgo. É uma grande cidade turística e deve ser cara de certeza. Alojamentos no centro, nem pensar. A pousada de juventude também é no centro mas estou a pensar se há sítio para estacionar a moto. Paro num posto de abastecimento e tiro da mala o meu livrinho de apontamentos. A minha Amiga Susana Beirão (a rasteirinha de Góis) deu-me uns endereços de B&B onde ficou há uns anos quando cá esteve. O desafio é encontrar a morada. Vou perguntar ao funcionário da bomba. Também não sabe. Na loja há um Atlas das estradas, um livro com milhentas folhas e detalhe das estradas e ruas. Folheia aquilo e consegue ver onde é. Afinal é bem perto, até estou na saída certa da auto-estrada. Explico-lhe que ando à procura de alojamento e pergunto se sabe de algum. Diz-me que naquela zona há muitos, mais baratos que na cidade e fica apenas a 10 minutos do centro. Vê o autocolante de Portugal colado na moto e começamos à conversa. Já tinha estado na Madeira e gostou muito. Para me ajudar, agarra no telefone e liga para o B&B que eu tinha apontado. Fala com a senhora, pergunta se tem quartos livres, pergunta o preço. Depois de instalada e mais descansada, vou explorar o centro da cidade.
Esta foi uma conversa difícil. A pronúncia dos escoceses é cerrada, falam para dentro, comem as sílabas. Tenho de pedir para repetir e pensar no sentido das palavras. Faz-me lembrar os açorianos.
Um dia em Edimburgo chega apenas para perceber que não é suficiente. Uma semana, talvez. Esta cidade respira história, cada esquina é um mundo para descobrir, deambular pelas ruas faz querer ir sempre mais longe, ao fundo outro monumento, outra rua interessante, mais arquitectura fantástica. Mesmo com o céu nublado, a cidade tem uma luz própria, reflectida nos edifícios de pedra, cheira a mistério, a fantasmas.
As ruas estão cheias de turistas, percorrer a Royal Mile é uma descoberta permanente, cada cruzamento revela mais uma rua para explorar. Fazem-se milhas a pé por esta cidade sem se perceber que os pés já reclamam. O castelo, famoso pela história que encerra e pelos fantasmas que por lá passeiam deve demorar um dia inteirinho para explorar completamente. Não há tempo para entrar. Vagueio pelas ruas da cidade enquanto há luz, aproveito todos os centímetros de história que a cidade nos oferece. Ao entardecer, filas de turistas encarreiram atrás de um guia, vestido com kilt e uma capa negra que vai mostrar as catacumbas da cidade, o cemitério e contar as lendas dos fantasmas.
Mas nem tudo é turismo. Por cima da ponte North Bridge há uma carrinha da ajuda humanitária e uma fila de sem abrigo à procura de uma sopa quente e um pão. São as contradições de qualquer cidade, Edimburgo é um local de riqueza e também de pobreza.
Qui 02 Junho 2011
Hoje vou evitar as auto-estradas. Estou farta de camiões, de trânsito rápido. Sair de Edimburgo é um tormento. Para fugir ao trânsito vou dar a volta pela circular da cidade, uns 30 km a mais. Antes de chegar a Stirling desvio pelas secundárias. Agora sim, agora aparecem as paisagens que estavam no meu imaginário. Começa a descoberta. Estradas serpenteantes pelos vales, tudo verde, riachos correm lá em baixo, depressa, água cristalina, quase se adivinha o som cá de cima. Uma seta a indicar Castelo. Vou espreitar.
Pitlochery é uma vila linda. Marca o início das montanhas e a rota das destilarias. Encontro a primeira, da Bell’s, apanho uma decepção do tamanho de um barril de whisky. Uma construção em pedra, quase não se vê, tal o tamanho dos cartazes a anunciar a destilaria. Ao lado, um gigantesco parque de estacionamento cheio de camionetas de excursão. Um ror de gente a entrar e a sair. Perdi a vontade de ir visitar.

Sigo para Norte. Quando chego ao Blair Castle percebo que já é tarde. Encontro um enorme portão fechado. Fechou às 4:30h. Raios, neste país não se pode aproveitar o dia todo. Estou aborrecida. Continuo caminho e entro no parque natural de Cairngorms. A paisagem é fabulosa. Felizmente não tem hora para fechar.
As pequenas aldeias vão rareando, tudo é verde, cheira a relva cortada. A estrada ora está rodeada de floresta, ora serpenteia junto a um Loch, ora sobe e presenteia-nos com uma vista fantástica, ora corta por um vale esmagado pelas montanhas.
Estou cansada. Decido parar em Aviemore e procurar alojamento. Aqui sei que há uma pousada de juventude, por isso estou safa. À entrada da pequena vila há um parque de campismo e vejo uns bungalows. Vou perguntar, fica ao mesmo preço da pousada e tenho quarto individual. Nem hesito. Fico já por aqui. Mesmo ao lado um restaurante italiano anuncia um buffet de massas e pizzas de comer até querer. Ora aqui está uma boa ideia.
Depois de jantar sento-me lá fora, no silêncio. São 10 horas da noite e o dia ainda dura, um lusco-fusco difuso. Ouve-se apenas o trinar dos pássaros e o movimento dos pinheiros ao som do vento. Nos relvados aparecem coelhos, mexem-se por entre o estacionamento, cheiram os pneus da moto, andam para a frente e para trás, saltitam por ali. No horizonte as montanhas recortadas, escuras. O olhar é cortado por uma aranha que desce por um fio, lentamente, desde o telhado até ao chão e depois desaparece.
Sex 03 Junho 2011
Hoje é dia de tomar decisões. Quanto mais a Norte, mais estreitas são as estradas, retorcidas de curvas, o andamento tem de ser mais lento. Andei meses a planear o itinerário. Mas os planos são apenas planos, intenções de rumo. Tinha pensado ir até John O’Groats, lá bem em cima. Hoje seria um percurso de quase 500 km. Mas já percebi que não é possível. A Susana Beirão avisou-me que as terras altas são desertas, cuidado com os postos de gasolina, não há nada. Estou a pensar se consigo chegar a Ullappol até ao final do dia. Olho para o mapa e decido. Que se lixe John O’Groats. Nunca fui de fazer promessas de passar em sítios que todos dizem que tem de ser. Afinal, John O’Groats é apenas um vilarejo conhecido por ter um porto onde se apanha o Ferry para as Ilhas do Norte. É também o ponto que marca a maior distância que se pode fazer no Reino Unido (John O’Groats – Land’s End). O Lés a Lés cá do sítio. Além disso, todos os ingleses com quem tenho falado pelo caminho me disseram que a costa Oeste é bem mais bonita. Não me está a apetecer fazer mais 200 km de curvas por uma falésia escarpada e batida pelo vento.
Decido atravessar pelo centro das Terras Altas, cortar caminho até Kyle of Tongue. Continuo rumo a Norte por uma paisagem verde e bonita.
Muito trânsito em estradas sem bermas. Não se consegue parar para tirar fotografias. Os carros andam com pressa. E eu ando furiosa, com tanta paisagem para fotografar e nem uma berma para encostar. A estrada acaba num remate alto em cimento ou tem uma elevação em terra e árvores ou num rail, sem espaço para encostar. Parar na borda da estrada é um suicídio com tantos carros a passar e bem depressa. De vez em quando aparecem uns locais próprios para estacionamento, mas rodeados de árvores, com vista para postes telefónicos ou de electricidade, sem visão para o horizonte. A paisagem que eu quero fotografar ficou lá atrás ou está tapada de árvores.
Já estou muito a Norte e as Highlands que procurava, não aparecem. Nada do que tinha imaginado está à vista. Prados verdes, riachos a serpentear pelos vales, montanhas altas despidas de árvores. Com um bocadinho de sorte ainda apareciam uns Clans de escoceses, de saias aos quadrados, montados em cavalos. Para já é bonitinho, mas ainda não me tira a respiração. De repente, a seguir a Lairg, a estrada transforma-se num caminho de uma só via, onde apenas cabe uma viatura (single track road). E a paisagem mudou. E o meu imaginário torna-se realidade.

Apetece fotografar cada metro de paisagem. Paro centenas de vezes nos locais de passagem (passing place). Paisagem de uma beleza agreste, solitária. As casas são raras, não se vê gente. Apenas umas bolas amarelas salpicam os vales, carneiros felpudos. Rolo devagar a beber a imensidão do universo, o sol pinta os vales de verde quente. Numa curva de estrada vejo um enorme veado junto a um riacho, castanho, possante, de hastes enormes. Travo de repente e desligo a moto. Corro em bicos de pés para trás de máquina pronta. Mas já não está lá. Assustou-se com o barulho do motor. Mas a imagem deste animal lindo vai ficar gravada na minha memória.

Cá em cima o espaço é aberto. Respira-se horizonte, sente-se a liberdade do mundo. O único som é do vento. Ao chegar à costa norte levanta-se o vento. Vendaval. Sopra a nortada vinda do mar. Constantemente. A estrada encavalita no cimo dos montes, o vento verga a natureza rasteira, empurra a moto. Ando de lado, com a escarpa e o mar à direita e as montanhas à esquerda. Terra assolada pelo vento, vegetação queimada pelo frio.
Está frio. Muito frio. Tenho as mãos geladas e o nariz vermelho. Felizmente hoje vesti a minha camisola interior térmica, tenho um polar e o blusão com os forros todos e bem apertadinho nos punhos. Mas o frio sente-se na mesma. As nuvens tapam o cume das montanhas, o nevoeiro desce pelas encostas, o vento empurra a humidade do mar, cola-se à roupa, arrepia os ossos. De vez em quando, numa curva de estrada, vê-se ao fundo um raio de sol a iluminar uma encosta virada a oeste.

Em Tongue fico sem bateria na máquina fotográfica. Entro num pequeno Hotel e explico o meu problema. Com um ar muito desolado. O vosso país é fantástico e não posso tirar mais fotos. A simpática senhora deixa pôr a bateria a carregar. Faço uma pausa e almoço uns pães com qualquer coisa dentro que não descobri o que é mas tinham bom aspecto no supermercado. Num recanto do estacionamento, bate o sol e aquece-me a alma. Pronta para mais uns kms até Ullappol.
A pousada de juventude em Ullappol é mesmo frente ao mar. É habitada por caminheiros, homens magros e secos, pele queimada pelo frio. Têm botas enormes e pilhas de mapas de relevo. Falam entusiasmados das paisagens que descobrem, saem de madrugada de mochila às costas e perdem-se nas montanhas.
No Pub da vila servem hambúrgueres, a única coisa com preço razoável. Na mesa do fundo ouço falar português. Três homens a falar alto e a praguejar. Claro que vou meter conversa. São pescadores do mar do Norte, tinham vindo descarregar o barco e aproveitam para beber uma cerveja. Dizem que 90% das tripulações dos barcos dos mares do Norte são portugueses, da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde. A pesca em Portugal acabou e eles imigraram. Falam do frio, das ondas de 8 metros e das saudades de casa.
São 11 horas da noite e o dia ainda vai alto. Às 4:30h da madrugada já é dia. Está frio. Nove graus. Não admira que os carneiros sejam felpudos e as vacas tenham cabelo comprido.
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Sab 04 Junho 2011
Hoje o dia está cinzento. Mas não chove. Saio de Ullappol com um frio de rachar. Rumo ao Sul. Já estou com saudades de sol. Ontem à noite liguei para casa e a família estava a planear ir à praia. Aqui também há praias, mas apenas para fotografar. São tão húmidas que o vento nem levanta a areia.
As placas aqui têm nomes estranhos. Gaélico incompreensível. Tal como a pronúncia dos escoceses. Indecifrável, aparentemente até para os ingleses. Cada vez que falo com alguém tenho de pedir para repetir. Mais de uma vez.
Atravesso o Beinn Eighe, uma cordilheira de montanhas desertas. Mais uma vez por uma estrada estreita, onde só passa um carro de cada vez. É fenomenal. Ninguém à vista, deserto de gente. Apenas se vêm alguns carros estacionados de caminheiros que andam a explorar os montes.
Mesmo sem mar à vista, há água por todo o lado. Os lagos (Lochs) sucedem-se. Ao descer para sul, a paisagem está menos agreste, mais verde, muitos prados. A estrada serpenteia pelos montes, estreita, escorregadia, desce aos vales. Continuo sem ver ninguém. De vez em quando cruzo com uma auto-caravana. E carneiros e ovelhas, os únicos espectadores da minha viagem.
Já me têm dito que é estranho viajar sozinha. Pois eu não penso assim. Acho que depende do país, do destino, do percurso. Ali mais à frente há vilas, há gente, há um país inteirinho com milhões de habitantes. Cá em cima há silêncio. Com tanto horizonte pela frente, os olhos tão cheios de paisagem, a paz que se sente, parada a ouvir o vento, não dá tempo para pensar que estamos sozinhos. A solidão não está à nossa volta, mas pode estar dentro de nós. À minha volta sinto vida, sinto a natureza a palpitar. Faço parte do mundo, sinto a energia da terra, nunca estou só.
Finalmente chego à Ilha de Sky. A famosa ilha que todos falam. Entra-se por uma ponte moderna. Faço umas dezenas de km lá dentro. O que vejo já não me admira. È a mesma paisagem, fantástica mas não me surpreende. Para quem vem do sul, a ilha de Sky é uma primeira aproximação da paisagem das terras altas. Deslumbrante para quem chega da civilização. Mas para quem correu o Norte, as terras agrestes lá do alto, a ilha de Sky não é novidade.
Decido voltar para sul e parar no famoso Eilean Donan Castle, o castelo mais conhecido da Escócia, onde foi filmado aquele filme do homem que nunca morria. Do parque de estacionamento tem-se uma vista total sobre o castelo, que realmente é lindo. O preço da visita ao interior é feio. Fico por ali a ver filas enormes de turistas a descer de camionetas e a seguir os guias pela ponte que dá acesso ao interior. Eu e mais umas dezenas de motociclistas a pensarmos nos litros de gasolina que podemos gastar com o preço da entrada.
Em Invergarry procuro alojamento. Há muitos B&B ao longo da estrada. Paro num e pergunto se tem quartos disponíveis. São 40 libras. Recusei polidamente com a desculpa de ser ainda longe da cidade e não haver restaurantes. A simpática senhora disse que podia fazer jantar. Eram apenas mais 30 libras. Arregalo os olhos de espanto. Nem preciso dizer mais nada. Ela faz um sorriso de entendedora.
Vou até Fort Augustus. Sei que há lá uma pousada. É fácil de encontrar, logo à entrada da vila. Está dentro de um parque de campismo, é nova e custa apenas 17 libras. Mais dentro de orçamento. Mas continuo com o problema de arranjar jantar. Pego na moto e vou até ao centro. Restaurantes, muitos, menus caríssimos. Vejo uma casa de Fish and Chips. Ainda não experimentei. Vou ver.
Ainda não entrei e já cheira a óleo. Um balcão corrido cheio de fritadeiras. Parece que só vendem batatas fritas. Ponho os óculos e vejo o menu. Para além do peixe frito, descubro salsichas (fritas, claro). Peço uma dose. Pago 4 libras e espero pela minha vez. O empregado vem-me perguntar se quero sal e molho de vinagrete. Depois de ver os quilos de sal que ele estava a pôr nos outros pedidos, digo-lhe que não. Ele pergunta porquê? Digo-lhe que faz mal à saúde. Ri-se muito e dá-me uma dose de batatas fritas e salsichas “saudável”. Todos se riem.
À noite, faço um pic-nic na cozinha da pousada. Nem consigo comer metade das batatas, tal é o tamanho da dose. Aparece uma rapariga canadiana que anda a passear de bicicleta. Chegou tarde e já estavam os restaurantes todos fechados, até o take away. Ofereço-lhe as batatas fritas. A fome deve ser muita pois devora as batatas todas. Ficamos à conversa até tarde.
Dom 05 Junho 2011
De manhã ainda cheiro a óleo. Está frio, nevoeiro, o céu cheio de nuvens ameaça chuva. Vou até ao centro de Fort Augustus. Ontem não tive tempo de visitar a cidade e o Caledonian Canal, um canal que faz a ligação entre o Lock Ness e o Loch Lochy (que juntamente com o Loch Oich dividem as Highlands das Lowlands). Chego ao centro e apanho uma fila de carros enorme. A ponte está levantada para os barcos passarem de um lago para o outro. Estaciono mesmo junto ao canal e vou fotografar as comportas a abrir e a encher de água. Fico por ali ainda uma hora a apreciar a obra de engenharia.
Estou no extremo sul do Loch Ness e, claro, não podia deixar de fotografar o famoso lago que é igual a todos os outros por onde passei. A diferença é que este tem uma Nessie, motivo de visita por muitos turistas na esperança de tomarem um chazinho com o monstro. Deve ser um negócio rentável a avaliar pela quantidade de barcos que anunciam cruzeiros pelo lago.
Sentada num café à espera que a ponte abra, lembro-me que ainda não vi nenhum escocês de saia. Estou bem no meio da Escócia, já dei a volta lá por cima e nada. Os únicos homens de kilt que vi foi nos postais ilustrados … jeitosos para enviar às amigas.
Nem a propósito, olho para o lado e está a entrar no café um senhor com um kilt vestido. Vou a correr atrás dele e peço para tirar uma foto. Explico que já dei a volta à Escócia e é o primeiro kit que vejo. Já andava desanimada. Ele riu-se e divertido disse que já não há homens como antigamente. Pousou para a foto. Pronto, já tenho uma prova que eles existem.
Isto de fazer férias contadas é muito ingrato. Uma frustração gigantesca. Quando se anda a viajar, duas semanas de férias parecem 5 minutos. Tanto mundo para descobrir, tanta gente para conversar, tanto espaço para respirar. Mas o tempo está limitado, há que fazer opções. Tenho dois dias para chegar ao porto de embarque para a Ilha de Man. São cerca de 600 km mas ainda quero passear. E evitar auto-estradas. E passar por alguns sítios que me despertaram a atenção quando andava a navegar na Internet a planear a viagem. Aqui mais a Sul está Oban, a Ilha de Mull e a estrada da costa até Glasgow. De certeza haveria muito para ver. Foi difícil, muito difícil, tomar a opção de cortar pelo interior. Mas tem de ser. Não se pode ter tudo. Mas gostava. Oh se gostava.
A seguir a Fort William, atravesso o Glen Coe. A atmosfera está cinzenta. Na montanha está um frio de rachar, uma chuva miudinha que ora cai ora não. Nevoeiro cerrado. O Ben Nevis (a montanha mais alta das Ilhas Britânicas) está tapada de nuvens, a humidade entra pelas poucas frinchas dos punhos e gola do casaco. Já não sei se vir por aqui foi boa decisão. Não paro de pensar se pela costa não estará melhor. É o dilema de sempre. Quando não nos agrada, pelo outro lado era capaz de ser melhor. Mas já que estou aqui, em frente é o caminho.
Finalmente começo a descer as Grampian Mountains. O tempo abre e o sol aparece. A estrada corre para o vale, transforma-se num percurso lindo, sempre a acompanhar o lago. Vou admirando a paisagem. De repente vejo outra seta a dizer – Castelo. Viro para uma estrada estreita e sem saber como vou parar ao terminal do comboio do Harry Potter. Lá me enganei outra vez. Ainda bem. Volto para trás, viro para o outro lado e encontro o castelo, em ruínas.

Ao chegar a Tyndrum avisto o Welly Stop, o café que é ponto de encontro dos motociclistas da região. Umas dezenas de motos no estacionamento. Vou ver o que se passa. Vejo uma tenda com posters de motos. Está a decorrer uma acção de prevenção rodoviária para motociclistas, organizada pela IAM (http://www.iam.org.uk/) com o apoio da polícia.
Pergunto se posso tirar uma foto. Já tinham reparado na miúda que estacionou a moto do outro lado da estrada com um “P” colado na mala. Vens de Portugal? (este “P” faz milagres – obrigada João Krull). Conversa puxa conversa a acabo a experimentar as motos dos polícias.
Mais abaixo, a caminho do Loch Lomond aparece o Drovers Inn (http://www.thedroversinn.co.uk/), considerado o Pub mais antigo da Escócia, é um local onde ainda hoje há fantasmas e histórias. O interior é fantástico, dizem que está tal e qual como há séculos atrás. É também um hotel onde os fantasmas se divertem a pregar sustos aos hóspedes. Fantasmas, não encontro, mas o urso ainda cá está.

Por hoje acabou o passeio. Tenho de ir dormir mais a Sul para amanhã conseguir chegar à hora de almoço a Barrow. Sigo em direcção a Glasgow e apanho a auto-estrada. Começa a cair uma chuva miudinha. E vento. Já se torna desagradável passear. Vou indo para Sul, até aguentar. A chuva é cada vez mais forte e o frio cada vez mais frio. Está na hora de parar e encontrar alojamento. Desta vez fico por um Hotel de auto-estrada.
Depois e me instalar, vou à estação de serviço procurar óleo de corrente. Anda a fazer um ruído esquisito. Tinha trazido a lata de óleo que estava lá em casa mas descobri que estava no fim. Deu para por uma vez e depois, lixo. Vou tentar comprar uma, tantos km feitos e a corrente já dá sinais de cansaço.
Pois é, não há e nem vendem. Um funcionário, o Robert, também ele motociclista diz que só nos stands de motos é que vendem. A minha cara de aflita levou-o a perguntar se era grave. Digo-lhe que a corrente faz uns ruídos estranhos. Então diz que sai de serviço às 11 horas e que vai a casa buscar óleo de corrente para ajudar. E assim foi. Às 11h estou eu à porta da gasolineira e ele diz – já venho. 15 min depois aparece com o óleo. Vamos até ao Hotel onde tinha a moto parada mesmo à porta da recepção. O porteiro deixou pô-la no átrio para ficar mais segura. Lubrifica-se a corrente. Nem tenho palavras para agradecer. Ele vira-se para mim e disse – os motociclistas são mesmo assim !!!
Esta vida é um suceder de surpresas a solidariedade motociclista é demais, fantástica.
Cá está a foto do Robert, tirada pelo porteiro do hotel.
Seg 06 Junho 2011
No barco para Inglaterra um inglês com quem estive à conversa disse – ninguém vai a Barrow-in-Furness. Pois eu fui. E não me arrependi. Tinha combinado visitar o David e a Pauline, Amigos da Mónica Salgado (a minha Amiga motard que tem uma scooter eléctrica e num ano já fez mais de 10.000 km a electrões) que tiveram a gentileza de me arranjar alojamento na Ilha de Man. A pedido deles, levo uns pacotes de chá açoriano – Gorreana – que eles adoraram quando estiveram nos Açores. O caminho para lá atravessa o Lake District. Fabuloso. Quando não se espera, as surpresas sucedem-se. Na primeira paragem, em Penrith, descubro uma cidade lindíssima.
Depois, e sem ter planeado, atravesso uma passagem fantástica - Kirkstone Pass – Esta parte das Midlands não é tão agreste como a Escócia. Por entre as montanhas, a paisagem é verde, suave. Nos vales, as ovelhas animam os campos verdejantes. Florestas e casas em pedra fazem lembrar o Norte de Portugal.
Mais uma pequena cidade, mais uma agradável surpresa. Já me perdi várias vezes e falhei locais que pensava visitar. Mas encontrei outros. Uma paragem em Windermere e dou com uma cidadezinha deliciosa, casas antigas, very british. Passeio um pouco pelas ruas a ver o movimento, a ver as pessoas. O estômago dá horas. É tempo de almoçar, o menu dos poupadinhos nas pastelarias. Ando doida com as pastries, cada dia experimento uma diferente. São baratas, estão quentinhas e são deliciosas.
Uma hora depois chego à casa do David e da Pauline. Recebem-me com calor, contentes. Um casal que transpira bondade, amizade. Estão já na casa dos 70 anos. Foram motociclistas e também viajantes. A Pauline nasceu na Ilha de Man, conhecem a ilha aos palmos. Prepararam um mapa de Douglas, desenhado a lápis, com a direcção para a casa do Steve e da Jen, os Amigos deles que me vão receber na Ilha. A seguir oferecem-me um mapa da ilha, com o circuito das corridas marcado a vermelho e pequenos post-it colados nos melhores locais para assistir às corridas. E vários panfletos da ilha e um livro com a história das corridas. Passo aqui a tarde a ouvir histórias da Ilha de Man e a planear no mapa os melhores locais para assistir às corridas. O tempo passa num instante, a conversa não acaba. Eu gosto de conversar e eles também. Não me deixam partir sem jantar. Fazemos as contas às horas e dá para chegar a Heysham ainda de dia. Por aqui há luz até às 10h da noite. Tenho tempo de jantar e partir sem ter de conduzir às escuras.
O único ferry onde consegui reserva é às duas da manhã. Depois de uma centena de km ao pôr-do-sol, até Heysham, chego ao pequeno porto. Não está ninguém. Portas fechadas. Fez-me lembrar o aeroporto de Bissau que só abre quando chegam aviões. Por aqui também, mas são barcos. São nove da noite e ainda tenho um par de horas de espera. Estou gelada. Devem estar uns 5 graus. Saio do porto à procura de um lugar onde passar o tempo. Nem sei onde pois atravessei a pequena cidade sem ver ninguém. Logo na primeira rotunda há um Pub. Com a preocupação de encontrar o cais de embarque nem tinha reparado. Nem hesito, só penso que deve estar quentinho lá dentro. Vou fazer tempo e tomar um chá.
Toca o sino. São onze horas, tempo da última bebida. Sentada ao balcão, com o meu livro de notas, vou descarregando em letras os últimos dias de viagem. O Pub vai fechar e eu vou até ao porto ver se já abriu. Já lá estão meia dúzia de motos. Dão ordem para entrar no cais de embarque. Depois são 2 horas à espera para entrar no barco a ver um sem número de camiões de mercadorias a entrar no porão. Nunca mais acabam de entrar. Adormeço sentada em cima da moto. Acordo no chão. Caio eu e a moto. Nada de muito grave. As minhas malinhas novas, amachucadas. Ainda bem que são de alumínio. Se fossem de plástico, tinham-se partido. Andava o resto da viagem embrulhada em fita adesiva. Tenho tanto sono que nem me consigo aborrecer. Mais tarde penso nisso. A Ilha de Man está cada vez mais perto.
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Hoje o dia está cinzento. Mas não chove. Saio de Ullappol com um frio de rachar. Rumo ao Sul. Já estou com saudades de sol. Ontem à noite liguei para casa e a família estava a planear ir à praia. Aqui também há praias, mas apenas para fotografar. São tão húmidas que o vento nem levanta a areia.
As placas aqui têm nomes estranhos. Gaélico incompreensível. Tal como a pronúncia dos escoceses. Indecifrável, aparentemente até para os ingleses. Cada vez que falo com alguém tenho de pedir para repetir. Mais de uma vez.
Atravesso o Beinn Eighe, uma cordilheira de montanhas desertas. Mais uma vez por uma estrada estreita, onde só passa um carro de cada vez. É fenomenal. Ninguém à vista, deserto de gente. Apenas se vêm alguns carros estacionados de caminheiros que andam a explorar os montes.
Mesmo sem mar à vista, há água por todo o lado. Os lagos (Lochs) sucedem-se. Ao descer para sul, a paisagem está menos agreste, mais verde, muitos prados. A estrada serpenteia pelos montes, estreita, escorregadia, desce aos vales. Continuo sem ver ninguém. De vez em quando cruzo com uma auto-caravana. E carneiros e ovelhas, os únicos espectadores da minha viagem.
Já me têm dito que é estranho viajar sozinha. Pois eu não penso assim. Acho que depende do país, do destino, do percurso. Ali mais à frente há vilas, há gente, há um país inteirinho com milhões de habitantes. Cá em cima há silêncio. Com tanto horizonte pela frente, os olhos tão cheios de paisagem, a paz que se sente, parada a ouvir o vento, não dá tempo para pensar que estamos sozinhos. A solidão não está à nossa volta, mas pode estar dentro de nós. À minha volta sinto vida, sinto a natureza a palpitar. Faço parte do mundo, sinto a energia da terra, nunca estou só.
Finalmente chego à Ilha de Sky. A famosa ilha que todos falam. Entra-se por uma ponte moderna. Faço umas dezenas de km lá dentro. O que vejo já não me admira. È a mesma paisagem, fantástica mas não me surpreende. Para quem vem do sul, a ilha de Sky é uma primeira aproximação da paisagem das terras altas. Deslumbrante para quem chega da civilização. Mas para quem correu o Norte, as terras agrestes lá do alto, a ilha de Sky não é novidade.
Decido voltar para sul e parar no famoso Eilean Donan Castle, o castelo mais conhecido da Escócia, onde foi filmado aquele filme do homem que nunca morria. Do parque de estacionamento tem-se uma vista total sobre o castelo, que realmente é lindo. O preço da visita ao interior é feio. Fico por ali a ver filas enormes de turistas a descer de camionetas e a seguir os guias pela ponte que dá acesso ao interior. Eu e mais umas dezenas de motociclistas a pensarmos nos litros de gasolina que podemos gastar com o preço da entrada.
Em Invergarry procuro alojamento. Há muitos B&B ao longo da estrada. Paro num e pergunto se tem quartos disponíveis. São 40 libras. Recusei polidamente com a desculpa de ser ainda longe da cidade e não haver restaurantes. A simpática senhora disse que podia fazer jantar. Eram apenas mais 30 libras. Arregalo os olhos de espanto. Nem preciso dizer mais nada. Ela faz um sorriso de entendedora.
Vou até Fort Augustus. Sei que há lá uma pousada. É fácil de encontrar, logo à entrada da vila. Está dentro de um parque de campismo, é nova e custa apenas 17 libras. Mais dentro de orçamento. Mas continuo com o problema de arranjar jantar. Pego na moto e vou até ao centro. Restaurantes, muitos, menus caríssimos. Vejo uma casa de Fish and Chips. Ainda não experimentei. Vou ver.
Ainda não entrei e já cheira a óleo. Um balcão corrido cheio de fritadeiras. Parece que só vendem batatas fritas. Ponho os óculos e vejo o menu. Para além do peixe frito, descubro salsichas (fritas, claro). Peço uma dose. Pago 4 libras e espero pela minha vez. O empregado vem-me perguntar se quero sal e molho de vinagrete. Depois de ver os quilos de sal que ele estava a pôr nos outros pedidos, digo-lhe que não. Ele pergunta porquê? Digo-lhe que faz mal à saúde. Ri-se muito e dá-me uma dose de batatas fritas e salsichas “saudável”. Todos se riem.
À noite, faço um pic-nic na cozinha da pousada. Nem consigo comer metade das batatas, tal é o tamanho da dose. Aparece uma rapariga canadiana que anda a passear de bicicleta. Chegou tarde e já estavam os restaurantes todos fechados, até o take away. Ofereço-lhe as batatas fritas. A fome deve ser muita pois devora as batatas todas. Ficamos à conversa até tarde.
Dom 05 Junho 2011
De manhã ainda cheiro a óleo. Está frio, nevoeiro, o céu cheio de nuvens ameaça chuva. Vou até ao centro de Fort Augustus. Ontem não tive tempo de visitar a cidade e o Caledonian Canal, um canal que faz a ligação entre o Lock Ness e o Loch Lochy (que juntamente com o Loch Oich dividem as Highlands das Lowlands). Chego ao centro e apanho uma fila de carros enorme. A ponte está levantada para os barcos passarem de um lago para o outro. Estaciono mesmo junto ao canal e vou fotografar as comportas a abrir e a encher de água. Fico por ali ainda uma hora a apreciar a obra de engenharia.
Estou no extremo sul do Loch Ness e, claro, não podia deixar de fotografar o famoso lago que é igual a todos os outros por onde passei. A diferença é que este tem uma Nessie, motivo de visita por muitos turistas na esperança de tomarem um chazinho com o monstro. Deve ser um negócio rentável a avaliar pela quantidade de barcos que anunciam cruzeiros pelo lago.
Sentada num café à espera que a ponte abra, lembro-me que ainda não vi nenhum escocês de saia. Estou bem no meio da Escócia, já dei a volta lá por cima e nada. Os únicos homens de kilt que vi foi nos postais ilustrados … jeitosos para enviar às amigas.
Nem a propósito, olho para o lado e está a entrar no café um senhor com um kilt vestido. Vou a correr atrás dele e peço para tirar uma foto. Explico que já dei a volta à Escócia e é o primeiro kit que vejo. Já andava desanimada. Ele riu-se e divertido disse que já não há homens como antigamente. Pousou para a foto. Pronto, já tenho uma prova que eles existem.
Isto de fazer férias contadas é muito ingrato. Uma frustração gigantesca. Quando se anda a viajar, duas semanas de férias parecem 5 minutos. Tanto mundo para descobrir, tanta gente para conversar, tanto espaço para respirar. Mas o tempo está limitado, há que fazer opções. Tenho dois dias para chegar ao porto de embarque para a Ilha de Man. São cerca de 600 km mas ainda quero passear. E evitar auto-estradas. E passar por alguns sítios que me despertaram a atenção quando andava a navegar na Internet a planear a viagem. Aqui mais a Sul está Oban, a Ilha de Mull e a estrada da costa até Glasgow. De certeza haveria muito para ver. Foi difícil, muito difícil, tomar a opção de cortar pelo interior. Mas tem de ser. Não se pode ter tudo. Mas gostava. Oh se gostava.
A seguir a Fort William, atravesso o Glen Coe. A atmosfera está cinzenta. Na montanha está um frio de rachar, uma chuva miudinha que ora cai ora não. Nevoeiro cerrado. O Ben Nevis (a montanha mais alta das Ilhas Britânicas) está tapada de nuvens, a humidade entra pelas poucas frinchas dos punhos e gola do casaco. Já não sei se vir por aqui foi boa decisão. Não paro de pensar se pela costa não estará melhor. É o dilema de sempre. Quando não nos agrada, pelo outro lado era capaz de ser melhor. Mas já que estou aqui, em frente é o caminho.
Finalmente começo a descer as Grampian Mountains. O tempo abre e o sol aparece. A estrada corre para o vale, transforma-se num percurso lindo, sempre a acompanhar o lago. Vou admirando a paisagem. De repente vejo outra seta a dizer – Castelo. Viro para uma estrada estreita e sem saber como vou parar ao terminal do comboio do Harry Potter. Lá me enganei outra vez. Ainda bem. Volto para trás, viro para o outro lado e encontro o castelo, em ruínas.

Ao chegar a Tyndrum avisto o Welly Stop, o café que é ponto de encontro dos motociclistas da região. Umas dezenas de motos no estacionamento. Vou ver o que se passa. Vejo uma tenda com posters de motos. Está a decorrer uma acção de prevenção rodoviária para motociclistas, organizada pela IAM (http://www.iam.org.uk/) com o apoio da polícia.
Pergunto se posso tirar uma foto. Já tinham reparado na miúda que estacionou a moto do outro lado da estrada com um “P” colado na mala. Vens de Portugal? (este “P” faz milagres – obrigada João Krull). Conversa puxa conversa a acabo a experimentar as motos dos polícias.
Mais abaixo, a caminho do Loch Lomond aparece o Drovers Inn (http://www.thedroversinn.co.uk/), considerado o Pub mais antigo da Escócia, é um local onde ainda hoje há fantasmas e histórias. O interior é fantástico, dizem que está tal e qual como há séculos atrás. É também um hotel onde os fantasmas se divertem a pregar sustos aos hóspedes. Fantasmas, não encontro, mas o urso ainda cá está.

Por hoje acabou o passeio. Tenho de ir dormir mais a Sul para amanhã conseguir chegar à hora de almoço a Barrow. Sigo em direcção a Glasgow e apanho a auto-estrada. Começa a cair uma chuva miudinha. E vento. Já se torna desagradável passear. Vou indo para Sul, até aguentar. A chuva é cada vez mais forte e o frio cada vez mais frio. Está na hora de parar e encontrar alojamento. Desta vez fico por um Hotel de auto-estrada.
Depois e me instalar, vou à estação de serviço procurar óleo de corrente. Anda a fazer um ruído esquisito. Tinha trazido a lata de óleo que estava lá em casa mas descobri que estava no fim. Deu para por uma vez e depois, lixo. Vou tentar comprar uma, tantos km feitos e a corrente já dá sinais de cansaço.
Pois é, não há e nem vendem. Um funcionário, o Robert, também ele motociclista diz que só nos stands de motos é que vendem. A minha cara de aflita levou-o a perguntar se era grave. Digo-lhe que a corrente faz uns ruídos estranhos. Então diz que sai de serviço às 11 horas e que vai a casa buscar óleo de corrente para ajudar. E assim foi. Às 11h estou eu à porta da gasolineira e ele diz – já venho. 15 min depois aparece com o óleo. Vamos até ao Hotel onde tinha a moto parada mesmo à porta da recepção. O porteiro deixou pô-la no átrio para ficar mais segura. Lubrifica-se a corrente. Nem tenho palavras para agradecer. Ele vira-se para mim e disse – os motociclistas são mesmo assim !!!
Esta vida é um suceder de surpresas a solidariedade motociclista é demais, fantástica.
Cá está a foto do Robert, tirada pelo porteiro do hotel.
Seg 06 Junho 2011
No barco para Inglaterra um inglês com quem estive à conversa disse – ninguém vai a Barrow-in-Furness. Pois eu fui. E não me arrependi. Tinha combinado visitar o David e a Pauline, Amigos da Mónica Salgado (a minha Amiga motard que tem uma scooter eléctrica e num ano já fez mais de 10.000 km a electrões) que tiveram a gentileza de me arranjar alojamento na Ilha de Man. A pedido deles, levo uns pacotes de chá açoriano – Gorreana – que eles adoraram quando estiveram nos Açores. O caminho para lá atravessa o Lake District. Fabuloso. Quando não se espera, as surpresas sucedem-se. Na primeira paragem, em Penrith, descubro uma cidade lindíssima.
Depois, e sem ter planeado, atravesso uma passagem fantástica - Kirkstone Pass – Esta parte das Midlands não é tão agreste como a Escócia. Por entre as montanhas, a paisagem é verde, suave. Nos vales, as ovelhas animam os campos verdejantes. Florestas e casas em pedra fazem lembrar o Norte de Portugal.
Mais uma pequena cidade, mais uma agradável surpresa. Já me perdi várias vezes e falhei locais que pensava visitar. Mas encontrei outros. Uma paragem em Windermere e dou com uma cidadezinha deliciosa, casas antigas, very british. Passeio um pouco pelas ruas a ver o movimento, a ver as pessoas. O estômago dá horas. É tempo de almoçar, o menu dos poupadinhos nas pastelarias. Ando doida com as pastries, cada dia experimento uma diferente. São baratas, estão quentinhas e são deliciosas.
Uma hora depois chego à casa do David e da Pauline. Recebem-me com calor, contentes. Um casal que transpira bondade, amizade. Estão já na casa dos 70 anos. Foram motociclistas e também viajantes. A Pauline nasceu na Ilha de Man, conhecem a ilha aos palmos. Prepararam um mapa de Douglas, desenhado a lápis, com a direcção para a casa do Steve e da Jen, os Amigos deles que me vão receber na Ilha. A seguir oferecem-me um mapa da ilha, com o circuito das corridas marcado a vermelho e pequenos post-it colados nos melhores locais para assistir às corridas. E vários panfletos da ilha e um livro com a história das corridas. Passo aqui a tarde a ouvir histórias da Ilha de Man e a planear no mapa os melhores locais para assistir às corridas. O tempo passa num instante, a conversa não acaba. Eu gosto de conversar e eles também. Não me deixam partir sem jantar. Fazemos as contas às horas e dá para chegar a Heysham ainda de dia. Por aqui há luz até às 10h da noite. Tenho tempo de jantar e partir sem ter de conduzir às escuras.
O único ferry onde consegui reserva é às duas da manhã. Depois de uma centena de km ao pôr-do-sol, até Heysham, chego ao pequeno porto. Não está ninguém. Portas fechadas. Fez-me lembrar o aeroporto de Bissau que só abre quando chegam aviões. Por aqui também, mas são barcos. São nove da noite e ainda tenho um par de horas de espera. Estou gelada. Devem estar uns 5 graus. Saio do porto à procura de um lugar onde passar o tempo. Nem sei onde pois atravessei a pequena cidade sem ver ninguém. Logo na primeira rotunda há um Pub. Com a preocupação de encontrar o cais de embarque nem tinha reparado. Nem hesito, só penso que deve estar quentinho lá dentro. Vou fazer tempo e tomar um chá.
Toca o sino. São onze horas, tempo da última bebida. Sentada ao balcão, com o meu livro de notas, vou descarregando em letras os últimos dias de viagem. O Pub vai fechar e eu vou até ao porto ver se já abriu. Já lá estão meia dúzia de motos. Dão ordem para entrar no cais de embarque. Depois são 2 horas à espera para entrar no barco a ver um sem número de camiões de mercadorias a entrar no porão. Nunca mais acabam de entrar. Adormeço sentada em cima da moto. Acordo no chão. Caio eu e a moto. Nada de muito grave. As minhas malinhas novas, amachucadas. Ainda bem que são de alumínio. Se fossem de plástico, tinham-se partido. Andava o resto da viagem embrulhada em fita adesiva. Tenho tanto sono que nem me consigo aborrecer. Mais tarde penso nisso. A Ilha de Man está cada vez mais perto.
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Ter 07 Junho 2011
O barco atracou cerca das 5:30 da madrugada. Chove e chove e chove. Já é dia mas muito cinzento. E o frio ainda cá anda. Combinei ir bater à porta do Steve só pelas 10h da manhã. Achei que era muito desagradável aparecer lá de madrugada. Sento-me dentro do terminal dos ferrys a fazer tempo. Está quentinho aqui. Adormeci, um sono leve em que se ouve tudo à volta mas o corpo está desligado. Passadas umas horas começo a perceber o reboliço de pessoas e vozes. Já são quase 8h da manhã. O Pub em frente já abriu. Vou tomar o pequeno-almoço.
Vejo na TV que o mau tempo vai continuar hoje. Fico tão aborrecida que decido fazer qualquer coisa. Já que não consigo escapar à chuva, não vale a pena estar aqui sem fazer nada. Arranco para ver a Ilha. Subo para Norte até Ramsey. Sem querer dou comigo na estrada do circuito. Só tem um sentido. Não dá para voltar para trás. Tenho de fazer o percurso todo para voltar a Douglas de novo. A parte da montanha é assustadora. A estrada sobe até ao alto, uma vista sobre o mar espectacular, um vendaval que atira a moto de lado. Curvas largas e palanques de espectadores batidos pelo vento. Muitas faixas de publicidade, marcas do circuito e quase ninguém por aqui. O espaço é aberto, nos campos à volta qualquer um pode assistir de borla e onde quiser às TT Races, mesmo em cima do circuito. Estou a imaginar a vertigem de passar aqui a duzentos e tal à hora como fazem nas corridas.
E a chuva não pára nem as rajadas de vento. A descida para St Johns é feita por entre curvas à beira do precipício e cortinas de nevoeiro. Fico a pensar se não estarei bêbeda de sono para ter feito isto.
A Ilha de Man tem apenas 48 km de comprimento, 24 km de largura e 4 pequnas cidades em cada um dos pontos cardeais – Douglas, Castletown, Peel e Ramsey a norte. A capital deste governo autónomo é Douglas, local onde chegam e partem os ferrys que ligam ao UK e à Irlanda. É também a linha de partida para as TT Races.
São nove e meia. Arrisco a bater à porta do Steve e da Jean. Estão à minha espera. O David tinha ligado na noite anterior a dizer que eu chegaria de madrugada. Entro por ali dentro completamente encharcada e congelada. Nem sinto as mãos. Recebem-me efusivamente. O calor da recepção, o sorriso de bem-vinda aquece-me a alma. Com um chá quentinho, começámos logo à conversa. Já foram várias vezes a Portugal, adoram a comida, a região do Douro, Lisboa. São um casal já com mais de 70 anos, estão reformados, falam pausadamente. Moram numa colina com uma vista fantástica para o centro de Douglas e o porto. Em 5 minutos a pé estamos no centro da cidade. O cansaço de uma noite mal dormida e dos kms feitos numa semana fecha-me os olhos. Vou descansar.
Acordo, já passa das duas da tarde. O tempo mudou, a chuva foi embora, deixou um sol bonito a brilhar. O Steve diz que aqui, num só dia, podem passar as 4 estações do ano. De repente começo a sentir a ressaca de 11 dias seguidos na estrada, moleza e corpo dorido. Mesmo com o sol a convidar, vou deixar a moto à porta. Apetece-me caminhar, desentorpecer as pernas. Com o mapa na mão vagueio pela cidade. Estou esfomeada a pensar que tenho de ir ao supermercado e comer o que por lá houver. Logo à entrada da marginal há um restaurante italiano ainda com muita gente lá dentro. Faço o meu ar de estrangeira com fome, olhos cansados, pergunto se posso almoçar. A cozinha já fechou mas o rapaz simpático diz que pode servir um prato de massa. Devoro a bolonhesa. Quentinha, não sabe a óleo. Fico ainda mais mole.
A brisa cá fora devolve-me a vontade de passear. Na marginal só se vêem motos. Filas de motos estacionadas de um lado e do outro a perder de vista. No paredão junto ao mar está montada uma feira. Atracções barulhentas, rodas giratórias, carrosséis, barracas de tiro ao alvo, de peluches, balouços até ao céu, cada um com a sua música. A Ilha está em festa, não apenas para as motos mas para todos, grandes e pequenos.
A rua das lojas está apinhada de gente. Mas não às compras normais. Entram e saem das lojas de merchandising oficial, trazem t-shirts, blusões, bonés, sacos e sacos de recordações do centenário da Mountain Course. São roupas pretas e vermelhas com letras brancas brilhantes. Tudo muito caro.
O centro de Douglas tem apenas uma marginal frente ao mar (a promenade) e uma rua interior cheia de lojas (market street). Na parte mais alta da cidade passa a A2, a estrada que faz parte do circuito e onde está a linha de partida (o Grandstand), entre o Noble’s Park e o cemitério.
O centro da cidade está visto. Os bares ficam para mais tarde. Decido subir até ao grandstand. Há motos por todo o lado, estacionadas ao longo de todas as ruas, a circular nas estradas, o barulho dos motores é contínuo. Há festa na cidade!
Por detrás das tendas de merchadising e de bebidas está o paddock. Livre para ser visitado. Podem-se ver as máquinas, os campeões, a azáfama da corrida do dia seguinte. Brutal!
Mas o cansaço vence. Venho para baixo e passo pela estação do pequeno comboio que faz a ligação entre as principais cidades da ilha. Antigo o comboio e antiga a estação. Um mimo.
Para não passar fome vou ter de jantar muito cedo. Às 7h da tarde já os restaurantes estão cheios. Esta malta tem luz até às 10h da noite mas teimam em não aproveitar o dia todo. Pelas 8h da noite os bares começam a encher. Ainda dou uma espreitadela no Bushy’s, o bar mais concorrido da cidade. È uma tenda enorme mesmo no princípio da marginal. Tem movimento o dia todo mas ao entardecer enche-se de motociclistas, servem bebidas em copos gigantescos. As minhas pernas já não obedecem. Vou para casa.
O Steve faz um chá e sentamo-nos à volta do fantástico mapa que a Pauline fez para mim. Tem todos os locais interessantes onde se tem uma boa visão das corridas. Na TV anunciam chuva para amanhã. O melhor local para estar é lá no alto da montanha, antes de Ramsey, um sítio chamado Gooseneck. É num descampado, estaciona-se a moto na relva onde calhar e tem-se uma excelente visão para uma curva em “S” logo seguida de uma recta.
No meio da conversa o Steve diz que uma vez o circuito fechado, quem está no interior não pode passar para fora enquanto as estradas não abrirem. Estou a pensar na chuva que pode cair, pondero sobre onde vou comer, ter ou não casa de banho. Ficar o dia todo num descampado, sem comida, à chuva, não me apetece. Também nem me está a apetecer pegar na moto de madrugada para chegar lá antes de fecharem o circuito. Decido que vou ver as corridas dentro da cidade. Pergunto por um local que tenha menos gente. É difícil, diz o Steve. Mas aconselha-me ir para Braddan Bridge, cerca de meia hora de caminhada. Há lá duas igrejas e numa delas tem uma associação de voluntárias de caridade que fazem refeições. A igreja está aberta, pode-se usar o WC, vêem-se as corridas no adro e paga-se apenas 5 libras. Ora está resolvido. É mesmo para lá que vou amanhã. Ainda não são 11h da noite (ainda é de dia) e já ferrei o sono.
Qua, 08 Junho 2011
Acordo cedo para me fazer à caminhada. O Steve já anda pela casa e oferece-se para me levar lá. Que fixe. Saímos depressa porque a estradas fecham às 9:30h da manhã. As corridas vão começar às 10:30h. Ainda dá tempo para me mostrar o barco salva-vidas, o orgulho do Steve que pertenceu à tripulação durante 20 anos. Os “Lifeboats” são uma organização privada de resgate no mar, composta por voluntários. Acorrem a qualquer embarcação que esteja em perigo. Vivem de donativos e da venda de merchandising. Não querem nada com o Governo. Têm vários mecenas, gente de muito dinheiro que em alguma situação já foram resgatados das ondas por estes voluntários.
O circuito original das TT Races (Tourist Trophy) foi alargado à estrada da montanha - Mountain Course – em 1911. Tem 37 milhas (cerca de 60 km) de comprimento, é feito totalmente em estradas públicas e o ponto mais alto sobe até 420 metros acima do nível do mar.
Braddon Bridge é um entroncamento onde o circuito sai da cidade. Tem uma grande curva e uma recta. A igreja está bem situada na saída da curva e dá uma boa visão para a recta e o acelerar dos campeões. Encontro o que não esperava. Este espaço é frequentado pelos locais da ilha, pelos veteranos das corridas. Motociclistas, famílias, um ambiente fantástico. Nas paredes estão montados os altifalantes ligados à rádio local. Para se saber o desenrolar das corridas, o único meio é a rádio. Bem alto, os locutores vão informando que a estrada da montanha já fechou, que daqui a meia hora fecham as ruas da cidade, quais os participantes da 1ª corrida, a Supersport TT Race 2.
Os espectadores trazem as cadeiras da igreja cá para fora, alinham-se quase em cima da estrada. Conversam sobre os campeões, conversam sobre os anos anteriores, fazem croché, lêem o jornal, crianças brincam no relvado. As senhoras da associação montaram, na sacristia, um verdadeiro refeitório. Cada uma cozinhou a sua especialidade. Uma mesa enorme cheia de doces, chá, café e bebidas. Ao almoço servem refeições quentes, cozinha típica de Manx.
Vou passeando por ali a ver toda a animação de pessoas. Encontro uma cadeira vazia e sento-me. O tempo está cinzento, ouve-se na rádio que chove na montanha. A partida foi adiada. Passado um bocado já estou à conversa com a Chrissie, uma inglesa que vive há 15 anos na ilha. Conta-me que tirou 2 semanas de férias. Não perde as corridas por nada. Adora a agitação, adora as motos, vive esta época como se fosse Natal. Conhece muitas das pessoas que por ali estão. Finalmente, perto do meio-dia, dão o sinal de partida. Corro para junto do muro e preparo a máquina fotográfica. Ouve-se o rugido dos motores a aproximar-se. Aparecem quase deitados, a fazer a curva, aceleram e perdem-se de vista num instante. Não consigo apanhar nenhuma moto na fotografia tal é a velocidade.
As motos vão passando aos poucos. Nesta corrida não partem todos ao mesmo tempo. As motos partem em intervalos, têm de completar quatro voltas (um total de 240 km) e só se sabe quem é o vencedor depois de somar os tempos das 4 voltas.
A rádio vai gritando a posição dos corredores mais rápidos, os tempos e a velocidade média. Não admira que seja difícil de os apanhar na foto, estão com uma velocidade média de 211 km/h. À segunda volta lá consigo fazer umas fotos mais razoáveis.
O locutor anuncia que está de novo a chover na montanha e que houve um acidente. As corridas foram interrompidas. Mais um par de horas à espera e mais conversa, agora já num grupo maior de amigos que me perguntam sobre Portugal. De repente todos se levantam. A rádio anuncia que as corridas foram adiadas para amanhã por causa da chuva. A Chrissie pergunta-me se quero boleia para a cidade. Ela vai para o paddock ver a animação. Diz que é costume, depois das corridas os campeões estarem lá a dar autógrafos.
Chagamos lá e é uma agitação. Filas de pessoas para ter um autógrafo, para falar com os corredores. É um nunca mais acabar de motos e de gente. A Chrissie comprou uma T-Shirt quando veio para cá morar, há 15 anos, e desde aí que colecciona autógrafos. Tem a T-Shirt quase toda escrita. Mas ainda lhe faltam alguns. Eu que nunca tive jeito para paparazzi nem tão pouco conheço o nome dos campeões, arranjei a guia perfeita.
O Nicky Haiden está a dar uma sessão de autógrafos no stand da Dainese. Lá vai a Chrissie para a fila de espera. Eu vou para a frente, de máquina em punho tentar gravar o momento. Junto à porta está um monte de fotógrafos oficiais. Mal consigo furar. Vou sussurrando aos fotógrafos se me deixam passar. Vim de Portugal para ver os campeões, é a minha primeira vez. Faço um ar de garota de olhos arregalados e chego à primeira fila.
A Chrissie não cabe em si de contente. Parte logo para o próximo. Ela sabe onde são as boxes dos mais importantes. A seguir fazemos uma espera ao Mickael Dunlop. Mais uma foto. Continuamos por entre as boxes à procura de não sei quem. Pelo caminho encontramos um amigo dela que faz parte da trupe dos Purple Helmets. Tiro-lhe outra foto e pergunto quem raios são eles. Leva-me a um stand que vende exclusivamente vídeos de corridas e motos. Lá descubro.
A seguir andamos por ali a cheirar se há mais autógrafos. Passa por nós um tipo de scooter. Parou para falar com alguém, mesmo aqui ao lado. A Chrissie diz que é o John MacGuiness. Lá vai mais uma foto. Continuamos por ali e dou com o stand de uma equipa da BMW. Penso logo que os meus amigos haveriam de gostar de uma foto mais especial. Estou à porta a tentar fotografar quando um dos membros da equipa me diz que posso entrar. Nem hesito, tiro uma fotografia bem de perto. Entusiasmada com a história dos paparazzi pergunto se há alguém famoso ali. O mecânico que me disse para entrar apontou para um tipo sentado. Ele vai ser muito famoso. É um futuro campeão. Olho para o “ele” e o rapaz levanta-se para a foto com um ar resignado. Pronto, também apareço com campeões. Afinal o rapaz é o Rico Penzkofer, uma das promessas do campeonato alemão e mundial.
No programa das corridas vi um participante com nome português. Vamos ao stand da equipa dele mas não está lá. Até que gostava de encontrar um Tuga por aqui. Mais um passeio e dou com o Mick Grant a autografar o seu livro. Este nome já me é conhecido. Paramos à conversa com ele. Claro, foto para a posteridade.
Pelas 5h da tarde a Chrissie diz que tem de ir. Vai sair à noite com uns amigos e convida-me também. Mas ainda é muito cedo, digo eu. Ela responde que combinou às 8h no Bushy’s. Aceitei o convite. Mas continuo a pensar que estes ingleses são esquisitos. Em Portugal, a essa hora ainda nem jantei. Ela vai e eu fico por aqui mais um bocado.
Depois de encontrar um sítio para jantar uma pizza com um preço razoável, e depois de conhecer mais um inglês que acha que eu sou lisboeta de Espanha, vou ao encontro da Chrissie. Pelo caminho encontro o grupo dos meus amigos Tugas do grupo dos Motorraders do Facebook. Fico à conversa um bom bocado. Estão de partida, o barco é às 11h.
Já atrasada e com a Chrissie à minha espera, lá vou eu para o Bushy’s. Pelo caminho vejo um rapaz com uma bandeira de Portugal pelos ombros. Claro, mais conversa. Estão com um senhor que tinham encontrado no ferry e é português. Ao que parece, vivem e trabalham aqui muitos portugueses. Esta marginal de Douglas é uma surpresa constante. Acabo a ir directa para o Jack’s, para uma noitada até à 1h da manhã. Aqui é uma grande noitada. Lá em casa é costume apagar a TV a essa hora. Outros países, outros costumes. Amanhã volto às corridas. Vou para o mesmo sítio. A Supersport TT Race 2 ainda vai fazer as duas voltas que faltam, depois são os side-cars e ainda vai haver a TT Zero (motos eléctricas) e parada dos veteranos. As simpáticas senhoras deram um passe de livre entrada para quem lá esteve hoje. Estou fã daquele local.
Qui, 09 Junho 2011
Os ingleses não usam cortinas nem estores nas janelas. Significa que, para quem (como eu) não consegue dormir com luz, aos primeiros raios de sol, os olhos abrem. Bem cedo, a madrugada desperta por aqui e bem cedo eu acordo. A partir das 5.30h da manhã escondo-me debaixo dos lençóis a tentar dormir mais um bocado. Sem sucesso. A luz do amanhecer, a excitação de mais um dia para passear impede os olhos de fechar. O cansaço é substituído pela adrenalina da estrada, de tudo o que ainda há para ver.
Salto da cama de madrugada. Já há barulho pela casa, cheira a café. Às 7h da manhã estou a tomar o pequeno-almoço. Hoje, as corridas só começam depois do meio-dia. Tenho a manhã toda por minha conta. Vou passear, conhecer a Ilha. Escolho ir para Sul, o Steve diz que há locais muito bonitos para ver. Cá fora está um friozinho que acorda todos os sentidos. Gosto de sair cedo, sentir o dia a começar, o reboliço dos madrugadores. O sol vai subindo no horizonte. O céu tem um azul lindo. Dois dias a andar a pé, a estrada chama por mim.
Logo à saída de casa há uma rotunda com uma placa a dizer – Castletown. Significa para Sul. Numa estrada junto à costa, apenas 15 km e estou na pequena cidade piscatória com um lindo castelo.
Um pouco mais abaixo, depois de parar vezes sem conta para admirar a paisagem, estou em Port Erin, de onde parte a estrada até ao extremo Sul da Ilha. The Sound, chama-se o ponto onde se tem uma vista fantástica para outra ilhota – Calf of Man – uma pequena ilha deserta e reserva de pássaros. Dizem que no cimo do farol da pequena ilha, se consegue avistar a Irlanda de um lado e Inglaterra do outro.
Na vadiagem pela Ilha até me esqueci das horas. De repente percebo que se quero ver as corridas, tenho de voltar a Douglas. Agora estou mais à vontade, ontem fiquei a saber como se chega a Braddan Bridge, sei que há parque de estacionamento lá e não tenho o problema das estradas fecharem porque estou da parte de fora do circuito. Chego ao meu local favorito e vejo algumas motos a dar a volta junto á entrada. Já não deixam entrar. Não me apetece deixar a moto no cruzamento lá em cima. Vou arriscar e fazer-me de despercebida. Aponto a roda para a grade da entrada. Vem logo uma senhora dizer que já não há espaço. Abro a viseira, tiro o cartão de livre entrada que me tinham dado ontem. A senhora olhou-me com um sorriso. - Você é a rapariga que veio de Portugal, vi-a cá ontem. Venha, vamos arranjar um lugar para deixar a moto - E entro para o parque da igreja, para inveja dos que ainda estão a virar para trás. Isto de ser portuguesa em terras distantes é um luxo. E a minha vermelhinha ficou em excelente companhia.
Tenho o estômago colado às costas e o pensamento fixado nos petiscos que as senhoras da associação da igreja fizeram. Ainda tenho uma meia hora até as motos começarem a passar. Vou direitinha à sacristia de nariz no ar. Uma sopa de legumes que parece feita pela minha avozinha, uma “roasted potato” gigante recheada com chili com carne, salada, o paraíso. Nada cheira a óleo, tudo cheira a – quero mais. A primeira refeição decente que faço neste país. Como até conseguir. As corridas estão a começar, sou quase a única cá dentro. As senhoras olham para mim com ar maternal. Devo estar com cara de quem não come há 1 semana. Verdadinha pura. Ainda experimento dois doces. Café. A surpresa do dia – tudo isto por menos de 5 libras. Estou mesmo fã desde sítio.
Já se ouve o barulho das motos a passar na estrada. Cá fora os altifalantes gritam as posições da partida, quem está a passar onde. Todos estão de olhos postos na pista. O mesmo ambiente de ontem. Depois da 1ª volta, é a espera até as motos darem a volta ao circuito e passarem outra vez aqui. A Chrissie também cá está. Começam as conversas. Hoje já cumprimento muitas pessoas que conheci ontem. Conversa puxa conversa e vou conhecendo mais pessoas que me perguntam - É a rapariga que veio de Portugal?
Ando por ali a saborear a dinâmica do evento. Lá vêm as motos outra vez. Passam rápido, muito rápido. Tento tirar mais umas fotos mas desisto. Não tenho máquina fotográfica para isto. Sento-me no muro da igreja e vejo-as passar. Quase lhes toco. È mesmo na 1ª fila. Bem diferente de um autódromo.
Quase todos têm um livrinho na mão, com a grelha dos participantes. Vão anotando os tempos de cada volta dos corredores, fazem comparações, atiram prognósticos. O rádio é uma peça fundamental nestas corridas.
Um dos marshals (comissários de pista) vê-me de máquina pendurada. Sem bateria? Pergunta. Explico-lhe que desisti porque eles passam muito depressa. Ri-se e diz-me que do outro lado da rua há um cemitério, tem um caminho por dentro que vai dar mesmo em cima da curva. Apanho as motos em desaceleração, são mais fáceis de apanhar na foto. Vou espreitar.
O acesso ao cemitério é livre. Podem-se ver as motos a passar sem pagar. Um caminho por entre lápides de pedra lisa, algumas bem antigas, escurecidas pelo tempo. Encontro muitas pessoas aqui, a ver as corridas, sentadas nas campas, na relva, descontraidamente. Está um velhote sentado num jazigo alto, parece que está numa bancada VIP. Não sei se é insólito ou divertido. Lá diferente, é!
Há um espaço livre junto a um pilarete do muro. Apoio a máquina e consigo fazer umas fotos mais decentes.
Ao meu lado está um grupo de 4 ingleses. Um deles tem uma máquina de cano comprido. De cada vez que dispara põe um sorriso de contente. Espreito para o ecrã e vejo fotos fantásticas. Diverte-se a fazer zoom para ver a qualidade. Desanimei outra vez. Bom, quem não tem cão, caça com gato. E quem tem boca, vai a Roma. Meto conversa e elogio as fotos dele. Começamos à conversa. Chama-se Ian Mcnee. Digo que sou portuguesa, que é a 1ª vez na Ilha, que estou a adorar isto tudo. Logo a seguir disparo …
És fotógrafo profissional?
Não, apenas gosto de fotografia e de corridas.
Podias enviar-me algumas das tuas fotos para por no meu blog …
Yes, no problem
Bingo. Ele diz que sim. Arrumo logo a minha máquina. Passo o resto da tarde na conversa com eles. Vejo as restantes voltas dos side-cars. Passam na curva de roda levantada, o pendura a fazer acrobacias para estabilizar a máquina. Fantástico. Mesmo aqui à frente dos olhos.
E agora. Com umas fotos fantásticas.
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Conversa e conversa, é a vez das TT Zero. Estas passam mais devagar, cerca de 140 km/h, parecem quase paradas comparadas com as Supersport. Só dão uma volta ao circuito. Mas acho fantástico haver esta prova. Daqui a uns anos, respiramos todos melhor.
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Photo by Ian Mcnee
Na conversa com os quatro motociclistas de Manchester fiquei a saber muitas coisas sobre a Ilha e as TT Races. A época de corridas é uma romaria obrigatória para os motociclistas ingleses. Garantir um lugar no ferry é um exercício de nervos. Os alojamentos esgotam quase um ano antes. Nesta época, os residentes disponibilizam as suas casas para alojar quem queira cá vir. Todos os anos, o Turismo publica uma lista de pessoas dispostas a dar cama e pequeno-almoço. Também os parques de campismo são reservados com grande antecedência. É uma febre. Quem mora junto à estrada do circuito até aluga os quintais. Montam palanques e cobram para ver as motos na 1ª fila.
Na Ilha, fora das localidades, não há limite de velocidade. Na semana dos treinos é a loucura total que tem o auge no “Mad Sunday”, o Domingo em que a polícia fecha o circuito (com apenas um sentido) e todos podem entrar e competir uns com os outros. Carros com carros, motos com motos, carros e motos, todos na maior velocidade que conseguem. Alguns vêm à Ilha apenas para esse dia. Dizem que até há quem venha cá … para morrer.
A mística das TT Races não é apenas as corridas. Todo o ambiente é viciante. Respira-se motos por todo o lado. Os últimos modelos convivem com as relíquias do passado. Novos e velhos cruzam-se no mesmo espírito: as duas rodas.
São 7h da tarde. Ainda vão passar as motos antigas dos veteranos. Mas eu vou embora. Despeço-me das simpáticas senhoras da igreja com a promessa de voltar. Adorei este local. Tenho de enfiar tudo nas malas de novo. Acabou-se o descanso. Amanhã é dia de voltar à estrada. O ferry é de madrugada.
Sex 10 Junho 2011
Mal dormi com o nervoso de não acordar a horas. Se perder o ferry tenho de esperar uma semana até ter lugar noutro. Hoje é o último dia de corridas e a malta começa a regressar. Todos os ferrys estão esgotados. Não posso arriscar. Tenho 4 dias para estar em casa de novo.
Hoje o dia começou às 4:30h da madrugada. Cedo, muito cedo porque tenho de estar às 5h da manhã no porto para apanhar o ferry. Aqueles desgraçados obrigaram o pessoal a estar lá 2h antes … e levou mesmo 2h a carregar o ferry com tanta moto. Não cabia nem mais uma agulha naquele porão.
O barco está cheio de pessoal a dormir nas cadeiras. Madrugadores cansados e com olheiras. A ressaca de uns dias sem parar. Mais um cruzeiro pelo mar, uma vista interessante para as plataformas de petróleo. Acabo a dormir uma soneca de 2h até Inglaterra. Na descida até ao Sul ainda vou dar uma espreitadela ao País de Gales.
Sex 10 Junho 2011
Até Manchester foi um tirinho. Mais uma auto-estrada cheia de camiões a ultrapassar camiões, já me começo a habituar. O tempo está claro, parece que vou ter um dia bom. Parece…
Como este país me avariou as agulhas, claro que assim que assim que sai da auto-estrada me enganei no caminho. E andei perdida umas duas horas, devo ter andado às voltas pois passei duas vezes no mesmo lugar. Nada a fazer, decido parar no Pub dos Druidas e almoçar, com vista para um cemitério antiquíssimo e acompanhada por umas velhinhas de ar simpático que não tiram os olhos de mim. Com a barriga cheia é outra coisa.
As indicações do dono do Pub ajudam a encontrar o caminho que queria fazer. Horseshoe Pass, falaram-me que era um passeio a não perder, uma passagem entre montes, bem no meio de Snowdonia Park.
O País de Gales já não me arregala os olhos, depois de ter vindo das Highlands. É uma terra bonita, verdejante, muitas vaquinhas e carneirinhos nos campos verdes. A passagem continua a ser fantástica, mas muito parecida com outras paisagens que já vi por muitos lados.
Faço uma paragem no café Ponderosa, no cimo do monte, ponto de encontro da voltinha Domingueira do pessoal de Manchester. Peço um café e indicam-me a máquina. Neste país, os cafés saem das máquinas de escritório. Mete-se moeda, carrega-se no botão, sai um balde de café. Saudades da bica, tiro o copo da torneira antes de encher. Quando chego à caixa para pagar o Sr. Fica muito espantado … Está avariada a máquina … onde está o resto do café? … Fui eu que tirei o copo … Porquê? … Não quero mais café …. Olho para a máquina e já lá estava um empregado a limpar a torrente de café que saiu por fora ... todos me olham como se fosse louca …esgueiro-me para a esplanada …
Mal sai do parque de Snowdonia Park, começa a chover. Vou rumando a sul e a chuva não pára, é só para mim. A minha estrada é mesmo debaixo da nuvem escura. Olho para a direita, lá ao fundo, sol. Olho para a esquerda, sol. E eu no rasto da chuva e do frio.
Vou para sul, à espera de encontrar melhor tempo, mas o raio da nuvem negra não me larga. Perdi a vontade de passear, nem consigo tirar uma foto. A nuvem ganhou a batalha, seguiu sempre por cima de mim a jorrar água, estou encharcada, tenho as mãos roxas do frio. Por hoje chega, arranjo alojamento e enrolo-me nos cobertores quentinhos. O melhor mesmo é a nuvem largar a água toda por cá, por terras de sua Majestade. Estou a caminho de casa. Em Portugal, verão é com sol e calor. Já tenho saudades do sol quente.
Sáb 11 Junho 2011
Amanhã apanho o barco em Plymouth. São cerca de 400 km para fazer hoje. Lá fora está cinzento. Raio de tempo. Hoje estou preguiçosa. Saio para a estrada a meio da manhã. Daqui até lá abaixo não pesquisei muito para ver. Apanho a auto-estrada e vou direitinha para Sul. Já perto de Exeter o tempo abre. E a minha vontade de passear volta. Vou até Lands End, o ponto mais a Oeste de Inglaterra, o tal que marca a maior distância que se pode fazer nesta enorme ilha. Não fui lá acima, vou cá abaixo.
Saio da auto-estrada e percorro os 190 km até Lands End por estrada nacional, por estrada secundária e por estrada rural. À medida que me vou aproximando, a estrada diminui, fica mais estreita. Serpenteante por uma paisagem verde, ovelhas e vaquinhas, ando no meio de um postal ilustrado, tudo arrumadinho e, outra vez, estradas sem bermas. Até irrita.
Chego a Lands End e apanho mais uma desilusão. Primeiro, já está tudo fechado. Depois, isto é um local tão turístico que até perde a graça. Um parque de estacionamento gigantesco, de terra batida. Deserto. Um edifício enorme, cafés, restaurantes fechados, um pátio interior com restos de uma feira de carrinhos e bancas de venda. Até os lavabos estão fechados. Apenas o frio e o vento andam por aqui. Mas que raio, são 5:30h da tarde. Não me consigo habituar a estes horários.
Melhor assim, ando por ali a respirar a imensidão do mar, sozinha com as dezenas de coelhos a saltitar pelos relvados.
Sentada na relva, ao pôr-do-sol, penso que está a acabar. Já ando na estrada há 16 dias. Continuava por outros tantos, ou mais. Mas a saudade de casa fala mais alto. Já é muito bom poder fazer isto. Limpar a cabeça de um ano de trabalho e responsabilidades. Sentir a liberdade de fazer o que quero e quando me apetece, sem horários, apenas o horizonte que chama por mim, a curiosidade de ver o que se passa por esse mundo fora. Um pôr-do-sol é sempre uma altura mágica, o cair do dia significa apenas que vem aí outro dia. A vida descansa e renova-se. Esta viagem acaba aqui mas muitas mais virão.
Dom 12 Jun 2011
Ontem à noite levantou-se o temporal, choveu a noite toda, um som constante de bátegas grossas a bater nos vidros. Amanheceu cinzento, chuva, frio. Acordei com a esperança de dar uma última volta pela costa sul da Cornualha, procurar pequenas vilas piscatórias. Chove torrencialmente. A única coisa que vi foi o Pub perto do youth hostel onde pesquei umas torradas e um café. O senhor do hostel deixou-me ficar por aqui. Todos os restantes hóspedes saíram às 10h da manhã, como mandam as regras mas eu pude ficar ao abrigo do temporal. Tem um irmão motociclista que também anda a vaguear pelo mundo. Já não o vê há dois anos. Passo a manhã a ver TV e a esperar pela hora de embarcar.
Estou farta de frio, já chega de chuva, apetece-me voltar para casa, para o sol.
São duas da tarde, hora de ir para o ferry. Despeço-me do meu simpático anfitrião. O porto de embarque é já aqui ao fim da avenida. Saio a pensar se me vão deixar à chuva por muito tempo até embarcar. Tenho sorte. Mal chego, mostro o cartão de embarque e entro. Está um temporal danado. Atrás de mim está um grupo de espanhóis que também vieram da Ilha de Man. Começamos à conversa. São de Madrid. Convidam a “chica motera” para almoçarmos juntos. Um motociclista nunca está só. Haja outro por perto e há companhia de certeza.
O temporal continua. Mal o barco parte sente-se a ondulação do mar. Quanto mais longe da costa mais o barco tomba. A linha do horizonte abana como um pêndulo. Tudo mexe e range. Ondas gigantescas batem contra a frente do barco, escorrem pelos vidros, levantam uma nuvem de gotículas que parece fumo. Quando o barco bate no fundo da onda, treme, abana as estruturas, depois levanta a proa, salta, treme tudo, aperta o estômago, agonia. Esta travessia não está a ser fácil.
Não consigo estar no espaço dos restaurantes. Nem consigo almoçar. O cheiro a comida enjoa, as ondas a bater nas vigias impressionam. Encontro os meus Amigos dos Motorradres do facebook. O pessoal da Ilha de Man apanhou o mesmo barco, vamos juntos até casa. Fixe. Mas a conversa é curta. Estamos todos enjoados. Volto para a minha cabine. É um piso mais abaixo, na zona central no navio. O meu camarote é interior. Foi escolhido porque era mais barato. Ainda bem porque aqui dentro parece que mexe menos, é mais fácil controlar a náusea, quatro paredes que não mexem e um comprimido contra o enjoo que me deu o Paulo Lobato.
À noite já estou melhor. Tomar duche com o chão a mexer e a cabeça debaixo do chuveiro é um exercício de equilibrismo. A água teima em balouçar, tenho de me segurar e tentar ficar debaixo do jorro do chuveiro. A única solução é encostar-me à parede e virar o chuveiro todo para trás. Acabo a rir-me sozinha com a ginástica de tirar o champô do cabelo.
Subo para jantar. Há um montão de ingleses no deck de trás, a beber vinho e a ouvir o piano. Para eles isto é um cruzeiro, onde convivem e bebem uns copos. Conheci um velhote, que faz isto de 10 em 10 semanas. Diz que vai comprar tabaco a Espanha porque é a metade do preço.
As pessoas movimentam-se aos solavancos. Aos encontrões às paredes. Parece que está tudo bêbado. Até seria divertido se a náusea largasse a garganta. O jantar foi outro exercício de resistência. Tenho fome mas o estômago está embrulhado. Que raio de forma de acabar as férias.
Vou ter de dormir sentada. O barco não pára de balouçar. Faz-me lembrar quando era teenager e bebia uns copos. O mundo rodava sem parar. A única forma de dormir era sentada. Agora também, mas por razões diferentes.
Seg 13 Jun 2011
Acordo a meio da manhã, encostada às 4 almofadas que havia no camarote. O barco já não balouça. Cá fora está um sol fantástico. Estamos quase a chegar a Espanha, já sinto o calor de casa.
Mal desembarco, vem o bafo do sol. Paramos todos à entrada do porto. Começo por tirar o forro térmico. Eles têm de regressar hoje para Portugal, eu posso chegar só amanhã. Vou nas calmas por aí abaixo. Devagarinho como eu gosto. Despeço-me dos companheiros de alguns km e até breve.
Depois do frio todo, da maldita chuva que estraga a vontade de passear, atravessar Espanha debaixo do calor é uma bênção. As nuvens já não são escuras e ameaçadoras, carregadas de água. São tufos de algodão branco carregados de sol. Uma centena de km depois paro para tirar o outro forro do casaco. Fico apenas com o revestimento exterior e as protecções, abro os fechos respiradores. Tenho um sorriso de felicidade a pensar que o frio lá do Norte ficou mesmo lá em cima. Agora tenho as malas atafulhadas com os forros do casaco que me salvaram a vida nas Terras Altas.
Estou parada à beira da estrada, deitada sobre uma pedra a apanhar sol. Pareço um lagarto a expulsar o frio inglês. Sabe tão bem.
Mas tenho fome. Fome de comida boa, saudável, fome de comer. Acho que emagreci uns quilos. Só o cheiro a óleo que paira no ar inglês tira a vontade de comer. O orçamento era curto para entrar em restaurantes e as ementas também não chamavam pelo meu estômago. Apetece-me comer, apetece-me temperos, tenho fome.
Telefono ao meu Amigo Fernando do Motoclube de Mangualde. Dás-me tecto hoje à noite? Claro rapariga, tecto e jantar. Nem queria ouvir outra coisa. Arranco apressada a caminho de Portugal. Nem tenho consciência do caminho. Vejo a estrada passar veloz debaixo do pneu, nariz no ar a imaginar jantar.
Vou para casa. Adoro viajar, deslumbro-me com outros mundos, mas voltar a casa é sempre o melhor paraíso que há!
Excelentes fotos e relato. Gostei particularmente da ......Tomatina, ahahah. Boas curvas.
ResponderEliminarSão estes pequenos grandes relatos que nos fazem rolar com as nossas motas para todo e qualquer lado.
ResponderEliminarO ano passado Picos da Europa, este ano Barcelona, para o ano....logo vejo.
Um abraço e boas curvas.
Gostei das fotos. Partilhas sítios lindos, que num futuro espero poder visitar.
ResponderEliminarAdorei como escreves. Como relatas por onde passas. Parabéns pelo trabalho.
Boas viagens. :)
SimoneMarta.
Excelente crónica e viagem com muitos atractivos ... comparado a quê? ....rsssss..... sabes de quem é o "non-sense humour coment".
ResponderEliminarAdorei o blog Paula!
ResponderEliminarLindas viagens!
Acabei de comprar minha F650 funduro branquinha e suas viagens e relatos me animaram muito!
Abraços,
Lucas