O Reino Perdido no Tempo – Myanmar (2016)

OUT 2016

Um país esquecido, de florestas virgens, templos fantásticos e pessoas sorridentes. Isolado durante muitos anos, começa a abrir-se ao Mundo. Mas é o Mundo que se fascina com Myanmar, a sua simplicidade e beleza, a humildade das gentes, a surpresa de um país onde o tempo parou.


Demorámos a manhã inteira para entrar em Myanmar, na fronteira de Mae Sot com a Tailândia. O visto de entrada foi fácil. Difícil é entrar com veículos no país. Um monte de papelada e explicações sem fim.
Em Myanmar só há cinco anos que é permitido aos estrangeiros conduzir no país. É necessária uma licença do governo para se poder circular e temos de ser acompanhados por um guia turístico e por um oficial do governo. 

O itinerário dentro do país tem de ser previamente aprovado pois há zonas interditas aos turistas, principalmente no norte de Myanmar nas regiões da fronteira com a Índia e a China. São zonas onde há guerra civil, entre as tribos e o Governo ou entre as próprias tribos. Há mais de 100 etnias diferentes no País, muitas delas em guerra pelo seu território e com exércitos próprios. Não se pode entrar. A República da União de Myanmar, antiga Birmânia, tem 135 grupos étnicos reconhecidos oficialmente.

Os estrangeiros que entram de avião ou pelas fronteiras terrestres em transportes públicos podem circular livremente, sem viagens organizadas. Podem andar pelo país, utilizando os autocarros, comboios ou táxis sem restrições, exceto nas zonas interditas. Podem até alugar uma scooter elétrica e passear nas zonas turísticas, mas sem se afastarem muito. Caso queiram conduzir dentro do país de moto ou carro, têm de ter companhia. Além de que a autorização para entrar com um veículo tem de passar pelas polícias todas e ser autorizada pelo Governo.

Nesta zona do globo, Myanmar é o único país onde se conduz à direita (na Tailândia e Índia conduz-se pela esquerda). No curto espaço entre as duas fronteiras muda-se de faixa de rodagem. Em segundos tem de se alterar a forma de pensar a condução. Não há lugar a distrações pois, de repente, entra-se num país onde conduzir é uma aventura constante. Aparecem carros e motoretas de todos os lados, mudam de faixa sem sinalizar, entram na estrada sem ver. E, para tornar a experiência mais “interessante”, 99% dos carros têm o volante à direita, o que significa que têm de sair completamente da faixa de rodagem para ver se podem ultrapassar. Um caos.

O sul de Myanmar, entre a fronteira da Tailândia e Mawlamyine, faz lembrar África. Terra vermelha e o verde intenso das árvores. A estrada é estreita, piso picado, camiões e centenas de motoretas. E lixo. As casas são construídas com folhas de bananeira e palha, em cima de estacas. A altura entre o chão e as casas serve para evitar os mosquitos e os animais selvagens. A selva é densa.

As pessoas são humildes e incrivelmente simpáticas. Riem muito. As mulheres (e alguns homens) têm a cara pintada com uma pasta de cor bege, feita de Thanaka, um pequeno tronco de árvore que é esfregado numa pedra com água e que resulta numa pasta. Usam como protetor solar e como maquilhagem. Pintam as maçãs do rosto, o nariz e a testa, com desenhos circulares. Na entrada das cidades a polícia espera-nos. É a “tourist police”, criada há uns anos para ajudar os turistas. Esperam-nos à entrada, ligam sirenes e abrem caminho por entre o trânsito infernal e o emaranhado de motoretas. Param os cruzamentos para passarmos. Um luxo. Na saída da cidade despedem-se com sorrisos e tiram fotos connosco. É raro verem grupos de motociclistas por aqui. 

Em Mawlamyine, as cúpulas dos “Pagoda” avistam-se por toda a cidade. Pagoda em Myanmar são os Tsupas nos Himalaias, torres redondas, altas, douradas. Os “Pagoda” são marcos que definem locais sagrados onde estão depositadas relíquias. Os Templos podem ou não ter um Pagoda. É dia de festa no Kyaikthanlan Pagoda. Uma Stupa que guarda relíquias de Buda, construída no cimo de uma colina com vista para o delta do rio Salween. marca o fim da Quaresma budista e o Festival das Luzes. Tocam música, há cânticos e muitas flores, oferecem-se refeições aos peregrinos e as mulheres vestem roupas coloridas. É uma festa. 90% dos habitantes de Myanmar são budistas. Há milhares de pagodes e templos espalhados pelo país. Por todo o lado, por entre as árvores, avistam-se os topos de um pagode dourado.

Numa autoestrada que mais parece uma avenida entupida de trânsito, aproximamo-nos de Yangon. Nos limites da cidade tivemos de largar as motos. Ficaram guardadas num mosteiro debaixo de um telheiro, no meio de monges em meditação. Pagámos a guarda das motos e ajudámos os monges. Desde há 15 anos que proibiram motos na cidade. A taxa de acidentes era muito alta. Num minibus entramos na cidade. O trânsito é caótico. As ruas e avenidas estão a abarrotar de carros parados. Demorámos duas horas para fazer 30 km.

Yangon (ex-Rangoon), antiga capital, é a maior cidade de Myanmar, escura e suja. O centro da cidade é povoado de edifícios coloniais, herança dos ingleses. Estão todos decrépitos e abandonados. Intervalam com prédios modernos selvaticamente encaixados no meio de casas de estilo britânico. Todas as janelas e varandas têm grades, até ao último andar. Segundo percebi, até há pouco tempo a taxa de criminalidade era elevadíssima. É uma visão deprimente. Paredes sujas, tinta descascada, preto de poluição. Grades e plásticos por todo o lado. A baixa da cidade está organizada em ruas e avenidas perpendiculares, tipo americano. Não têm nomes, só números. O nosso hotel é na rua 21, uma rua estreita de um só sentido. O edifício tem nove andares, mas o hotel só começa no 4º andar. Há um guarda na porta a vigiar quem entra no elevador. Aparentemente sabe quem são os hóspedes do hotel pois cumprimenta todos com ar conhecedor.

Frente ao hotel, crianças jogam futebol no meio da estrada. As balizas são marcadas pelos chinelos. Uma das avenidas principais ao fundo da rua teria, supostamente, duas faixas para cada lado, mas os carros circulam só numa. A faixa da direita está invadida por barracas de comidas e de venda de frutas, legumes e insetos. Um carrinho com um fogão, uma vitrine-balcão e um sem número de mesas e cadeiras ao longo da via. São quilómetros de restaurantes de rua e de mercado. A maioria das lojas dos prédios são ourivesarias. Porta sim, porta sim. Tudo se passa na estrada. Numa das bancas há um caldeirão enorme aquecido a lenha. Dentro fervem grilos em óleo preto. Vários cestos largos exibem os grilos fritos. Um petisco que as mulheres compram em saquinhos de plástico para levar para casa, como quem leva doces para as crianças. Outras bancas servem espetadinhas de entranhas de porco. Estômago, intestino, fígado, língua ou orelha. Cortadinhas em pequenos pedaços espetados num pauzinho e grelhado nas brasas de um grelhador que está sempre aceso. É servido com tiras de couve-lombarda ou esparguete de coco, temperado com especiarias, numa taça com um caldo que sai de uma panela que está a ferver desde manhã. A rua 19 é a mais famosa entre os turistas. Só tem restaurantes.

Mesas e cadeiras de plástico invadem a estrada, cobertas por lonas suspensas em paus. Não passam carros. Muitos turistas vietnamitas, tailandeses e chineses. Alguns ocidentais, poucos. Jovens sentam-se na esplanada a beber cerveja e a degustar grilos fritos como se fossem tremoços. Na grande avenida a azáfama continua até cerca das onze da noite. Depois desmontam-se as barracas e fica só o lixo. A avenida volta a ter duas faixas de rodagem para cada lado.

Amanhece enevoado. A noite não teve tempo de limpar a poluição.

As barracas estão a ser montadas e o trânsito já é infernal. Nos locais turísticos um enxame de vendedores assedia os turistas com postais de Myanmar. Falsos monges mendigam dinheiro. Os motoristas de táxis querem levar-nos a ver a cidade. Um calor terrível e 80% de humidade. A roupa está colada ao corpo desde que cheguei.

Bogyoke Aung San Market é o mercado mais famoso. Três pisos de lojas vendem tudo. Óculos, roupas, tecidos, rolos de plástico, rendas e botões. No piso térreo são os produtos para turistas. Budas e elefantes em madeira, mantas coloridas, magnetes, bandeiras, ouro, prata e jade. A filosofia é igual em todo o Mundo – turista é para enganar. São todas peças únicas, feitas à mão por artesãos birmaneses, algumas ainda têm a etiqueta de “Made in China”...

Shwedagon Pagoda é considerado o local mais sagrado de Myanmar pois acredita-se que guarda relíquias dos quatro Budas, principalmente oito cabelos do primeiro Buda. Um complexo enorme formado por um Stupa monumental, com 98 metros, forrado a ouro e rodeado por mais 70 outros pequenos pagodes, salas de oração e estátuas de Buda. A base do Stupa é octagonal, onde cada esquina representa um dia da semana (e cada um dos sete planetas da astrologia birmanesa) mais uma esquina adicional pois a 4ª feira está dividida em manhã e tarde. Considera-se que o oito é um número auspicioso. 

Astrologicamente, o dia da semana em que se nasceu define um determinado carácter. É o horóscopo birmanês. Em cada esquina está um Buda e o animal correspondente ao dia. Há também uma pia com água (e uma torneira) e um copo. É suposto regar três vezes o Buda e o animal, com água, para se ter uma vida com saúde e sorte. Entre cada esquina da estrela há uma infinidade de oratórios com estátuas de buda e monges famosos. Os peregrinos ajoelham frente ao seu monge e rezam.

Em Myanmar (e na Tailândia, Laos, Cambodja e Vietname) seguem a linha de Budismo Theravada e muitos dos rituais têm origens Hindus. O espaço é impressionante. Tudo é dourado. À noite os holofotes apontam para o Pagoda. O contraste com o céu escuro faz com que o dourado fique ainda mais ouro.
Os 600 km que nos separam de Bagan tiveram de ser feitos em dois dias. Circular nas estradas estreitas e por vezes em terra batida é uma aventura. Carrinhas ferrugentas transportam pessoas até ao tejadilho, motoretas carregadas de mercadorias, scooters apressadas atravessam-se no caminho. As motos levam três ou mais passageiros.

Parece-me que há mais passageiros numa moto na Ásia que num carro na Europa. E mercadorias. Os campos são verdes e férteis. Legumes e verduras, milho, chá, algodão, frutas e arroz. Há campos de arroz até perder de vista. No vale do rio Irrawaddy, na grande planície central de Myanmar, foram construídos vários canais de irrigação tornando possível o cultivo de arroz em grandes extensões.
Muitas aldeias e vilas arrumam-se ao longo da estrada. Pequenos restaurantes servem refeições, preparadas em cozinhas nas traseiras que não têm mais que uma panela à fogueira e uma frigideira gigante onde preparam o arroz frito ou noodles.

Nas imediações das vilas e aldeias ouve-se música quando passamos perto de um pagode. Monges, noviços e aldeões estão à beira da estrada com cestos metálicos com moedas que agitam para fazer barulho e chamar os viajantes a contribuir para os mosteiros. Os monges vivem da caridade do povo.
Por vezes vemos procissões de aldeões que, engalanados com as suas melhores roupas, levam oferendas aos mosteiros.

Céu nublado. Ora chove, ora chove. Parece que há um tufão no golfo de Bengala que está a afetar toda a região. Um calor terrível debaixo de chuva e as estradas sempre enlameadas.

Bagan é uma zona no centro de Myanmar onde, num raio de 42 km2, existem cerca de 3000 Pagodes e Stupas. Os maiores foram construídos por reis e príncipes. Os mais pequenos por pessoas abastadas ou por gente do povo. Qualquer um construía um templo em homenagem a Buda. Do terraço do Shwegugyi Temple avista-se uma paisagem imensa polvilhada de pagodes, templos e mosteiros, com as suas torres douradas a espreitar por entre a floresta. Até ao infinito.

Após o sismo de 1975 e para preservar os templos, apenas bicicletas e carruagens puxadas por cavalos estão autorizados a transitar entre os pagodes. O sismo de agosto de 2016 destruiu mais alguns templos, principalmente as torres das maiores Stupas que se vêm tapadas com andaimes, em reconstrução.
Ao fim da tarde, num intervalo da chuva, sorrateiramente, pegámos nas motos e fomos descobrir algumas estradas de terra próximo do hotel. Uma sucessão de pagodes ao longo dos trilhos, por entre a vegetação, construídos em tijolo vermelho e detalhes esculpidos em pedra. Alguns têm câmaras interiores (para meditação), outros têm quatro portas, cada uma delas com uma estátua de Buda e frescos nas paredes. É brutal.

Entre Bagan e Mandalay choveu sempre, trovoada e gotas grossas. Estrada inundada, enormes poças de água. Tivemos de cancelar a ida a Monte Popa. Paramos várias vezes para descansar da chuva. Mas, mesmo no meio do temporal, as pessoas continuam a sorrir. Acolhem-nos com carinho, olham com curiosidade. Chamam para dentro das casas para nos abrigar. E sorriem.

A entrada em Mandalay foi surreal. As avenidas não têm drenagem, a cidade não tem esgotos. Nunca tinha conduzido moto com água até aos joelhos. Mandalay é uma cidade atípica. Entre terramotos e bombardeamentos (na 2ª Guerra Mundial) ficou sem arquitetura definida. Prédios de alturas diferentes, cartazes publicitários com modelos ocidentais, um trânsito infernal.

A colina do Sutaungpyei Pagoda domina a cidade. Lá em cima avistam-se os mais de 700 Stupas que guardam, cada um, uma pedra mármore esculpida com ensinamentos de Buda. É considerado o maior livro do mundo. A cidade tem um grande número de mosteiros e escolas de monges. Por todo o lado se vêm noviços, de cabeça rapada e vestes vermelhas e também monjas, raparigas de vestes cor-de-rosa, cabelo rapado.

Em Myanmar existem três sistemas de ensino – colégios particulares para os mais abastados, escolas públicas gratuitas para a classe média e as escolas/mosteiros dos monges para os mais pobres. Os meninos e meninas entram nos mosteiros como noviços, aos sete anos, e fazem vida monástica – começam às 6h00 a percorrer a cidade e recolher donativos, têm aulas de diversos temas (não apenas religiosos), comem uma refeição por dia e rezam. Os noviços não são obrigados a seguir a vida monástica. Podem frequentar a escola até à Universidade e depois sair para a vida civil (ou militar). Caso queiram ser monges, são ordenados quando conseguirem recitar de cor todos os ensinamentos de Buda.

A partir daqui entramos nas montanhas Shan. A paisagem começa a mudar. A vegetação é mais rasteira, verde mais claro, muitos rebanhos, pouco trânsito, estrada retorcida. Ao entardecer chegamos a Inle Lake, um lago com cerca de 100 km/2, a 900 metros de altitude, com uma vida própria, diferente de tudo. As pessoas vivem em aldeias em redor do lago, nas pequenas ilhas ou no meio do lago, em casa de madeira e bambu construídas sobre estacas.

Nas aldeias flutuantes as casas ligam-se com passadiços em madeira, um complexo sistema de “ruas” que dão acesso a fábricas de artesãos onde se produzem sedas e tecidos em fibra de lótus, peças em prata ou chapéus feitos em papel artesanal. A vida desloca-se em pequenos barcos a remo, entre as casas, escolas, mercados, mosteiros. O lago dá o sustento às populações, maioritariamente pescadores, mas também agricultores. Existem hortas e jardins suspensos no lago. O silêncio do lago inspira paz. O tempo parou.

Atravessar as montanhas em direção à fronteira de Tachilek demorou três dias. A estrada sobe a montanha e desce ao vale sucessivamente. Estreita, em terra batida, com obras constantes nas curvas apertadas. Floresta densa no topo e plantações de arroz nos vales. Nesta região a temperatura é mais amena, mesmo considerada fria para os birmaneses. As casas são de tijolo, têm cercas de bambu a delimitar os quintais. Na estrada põem o arroz a secar ao sol. Manadas de vacas e bois atravessam a estrada, rebanhos de cabritos entopem os cruzamentos.

As montanhas são habitadas por muitas tribos diferentes, com vestes coloridas, cintos em prata e cabelos compridos. Dormimos em Kunhing, uma cidade onde não há eletricidade, o modesto hotel (e único) tem um gerador ruidoso. Depois do anoitecer não se veem pessoas na rua. A comida é marcadamente chinesa, tal como as decorações dos mosteiros começam a ter mais arabescos.

Continuamos na AH2, uma das Asian Highways que atravessam diferentes países asiáticos. De autoestrada só tem o nome, mais parece uma estrada camarária por entre campos cultivados e Pagodes e Stupas e estátuas. São tantos que a certo ponto já não é novidade. Vamo-nos habituando às torres douradas e às figuras de Buda de tal forma que já nem tiro fotos. Acho sempre um fascínio a mente humana e capacidade de habituação. De início parava em quase todos os templos, agora já nem ligo.

Kyaing Tong fica no centro do Triângulo Dourado, uma área de montanha que apanha três países (Myanmar, Tailândia e Laos) onde se produz ópio - a segunda maior extensão de plantações a seguir ao Afeganistão. A uns quilómetros da cidade um posto do exército controla quem entra. Para circular nesta zona remota é necessária uma autorização especial do governo e do exército. Temos de submeter o percurso e somos vigiados constantemente, não só pela área, mas também porque mais a norte há guerra civil. Num espaço de 5 km contei quatro quartéis. Caravanas de camiões militares obrigam-nos a parar para os deixar passar. Intermináveis.

Finalmente chegamos a Tachilek, na fronteira com a Tailândia. Outra vez o mesmo rol de papéis para sair com as motos e entrar do outro lado. Há muito tempo que não viajava em grupo. Teve de ser, por causa das restrições de entrada em Myanmar. Foi uma boa experiência, pois os aventureiros têm o mesmo espírito de descoberta e simplicidade. É bom viajar, conhecer o Mundo. Uma aprendizagem da tolerância, humildade e felicidade.


A FELICIDADE É O INGREDIENTE PARA UMA VIDA LONGA
(provérbio birmanês)

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