Destino: Marrocos

Foi um destino que me chamou a atenção. Um passeio, em Abril de 2007, organizado pela Motomil com o apoio da Comunidade BMWCKLT. Uma semana em Marrocos para conhecer a diversidade do país, o interior, as montanhas e o deserto. Um percurso pensado para motos de estrada e para motos trail. Assim que li os pormenores da viagem fiquei entusiasmada. Eu e mais 34 pessoas. Deixo aqui um pequeno relato desta magnífica viagem, do que vi, do que senti.
O Início

5h:30m – Ainda cheia de remelas, lá vou eu para a estrada. Nem comi, nem tenho fome e nem dormi. Com a excitação só penso que vou realizar um sonho antigo. Cheguei ao ponto de encontro. Ainda falta pessoal. Afinal deu-me a fome. Enquanto esperava engoli um pãozinho e um galão. E um café, talvez o último decente que vou beber por uns tempos. Vamos embora, temos que chegar ao barco às 4 da tarde. Coluna reunida, as duas meninas motards vão atrás do líder, coluna atrás e dá-lhe gás. 18 motos, um jipe e a carrinha de apoio (cheia de malas nem sei como vai caber alguma moto que avarie).

A2 até ao Sul, estrada vazia, espaço para rolar. Isto promete. Paragem em Almodôvar, aproveito para mais um cafezito. Estrada de novo, começa a chover. Raios, espero que seja apenas um ameaço. Não era. A realíssima acompanhou-nos até ao reino de Espanha. Caía com força, molhava tudo, molhava os ossos. Paragem algures para almoço. As minhas botas pareciam um aquário. Tive de trocar de meias. Já não dá tempo de almoçar, engoli metade de uma sandes a saber a fritos e vamos embora.

A chuva não desiste e o vento faz companhia. Em conjunto, a sinfonia do temporal empurra as motos, embacia as viseiras, bate nas luvas, não se vê nada à frente. Um dos nossos caiu. Não se magoou. Mas o susto foi grande. E a moto perdeu os adornos que piscam, que iluminam e que protegem do vento. Tenta-se o milagre logístico de encaixar a moto entre a bagagem da carrinha. Conseguimos. Aproveitei para trocar de meias. A chuva continua a cair, o vento continua a soprar, faço a viagem a andar de lado. Chegámos ao porto. Perdemos o barco. A torrente de água melhorou, apenas chove. Troquei de meias outra vez.

Apesar de tudo o pessoal estava animado. Em amena cavaqueira, lá esperámos duas horas para embarcar. Raios, já não sei se é melhor apanhar chuva ou aguentar o balanço do barco.

Desembarcámos, entusiasmados, estamos em Marrocos. O cheiro do ar é diferente. Já anoiteceu. Continua a chover. É preciso tratar dos papéis da entrada, é preciso fazer o registo na polícia, é preciso fazer o registo das motos, é preciso falar com aquele oficial que anda com o carimbo mágico no bolso. É a corrida para as formalidades. Agora falta um número, agora vai mudar o turno, onde está o homem do carimbo?

Três horas depois lá conseguimos rumar ao Hotel. Cansados, esfomeados, encharcados, mas cheios de esperança. Afinal é só o primeiro dia e em África não chove. Aterrei na cama e sonhei com coisas quentinhas.

Finalmente em Marrocos


Madrugámos. Temos 600 km para fazer, rumo ao Sul. Continua a chover. Junto à costa, pela auto-estrada, velocidade limitada. Passámos uma portagem. Aqui não se pode facilitar, a polícia está alerta, bem posicionada ao longo da auto-estrada, carrinhas bem visíveis, polícias na faixa de rodagem. A chuva abrandou e aparecem várias famílias sentadas nos rails a acenarem alegremente. Passámos nova portagem. Transeuntes atravessavam a auto-estrada, ovelhas atravessavam a auto-estrada, rebanhos pastam junto ao alcatrão, jovens acenavam estusiasticamente para nós. Passámos outra portagem. Paragem para almoço. Há um bufet de saladas, um menu desconhecido, alguns marroquinos a beber chá, experimentamos as famosas brochettes, temos de pedir as batatas à parte, vamos lá a despachar ainda estamos longe, a casa de banho parece uma repartição, de tanta gente à espera.


Após mais algumas portagens, entrámos em estrada normal. Bom piso, bem sinalizada, o verdadeiro Marrocos faz a sua aparição. As casas são baixas, todas do mesmo tom terra, há tapetes pendurados nos terraços, atravessamos vilas cheias de gente nas ruas, mercados, lojas incríveis, cores, muitas cores, atravessamos pequenas aldeias com casas de terra batida, ocre, crianças, começam a aparecer as palmeiras, a terra é plana, o cheiro é diferente.


Parámos para reagrupar. Está a anoitecer. Lá ao longe adivinham-se as luzes de Marrakesh. O céu fica púrpura-ocre-vermelho-laranja, nem sei que cor é esta. Mas é divina. No infinito as estrelas brilham. São enormes.


Chegámos ao destino. A entrada do Hotel é magnífica. Estou nas mil e uma noites, rodeada de painéis de azulejos, arcos, tapetes, várias nacionalidades, muita gente.


De manhã acordamos tarde. Às nove horas estamos prontos para a cruzada turística. A pé, percorremos as grandes avenidas, vemos a mesquita de fora, entramos nas muralhas da antiga cidadela, deparamos com uma praça gigantesca. Jemaa el Fna é a porta de entrada do labirinto das compras. E a febre começa. Lojas e mais lojas, é só lojas. Lojas de tudo, vende-se tudo. Tapetes, pratos, cerâmicas, chinelas, carretas puxadas por pessoas apressadas, ruas estreitas, lenços pendurados, pergunto o preço e fico pasmada, é muito caro. Tento negociar, fico ali eternamente, o ritual é demorado, a negociação é feroz …… passam mobylettes em excesso de velocidade, cheira a caril, mais lenços, bijutarias, portas em madeira, trabalhadas, lindíssimas, latões, barulho, vidros, pratas, cores, tapetes, o cheiro é intenso, gente atarefada, vendedores, sacas à porta, grupos de turistas, ruas e mais ruelas, labirinto, voltei ao mesmo sítio, não sei se guardo a máquina fotográfica ou se disparo até esgotar o cartão. Nem damos pelas horas passar.









A Montanha e o Deserto

Hoje o dia está lindo. Frio mas muito sol. Céu aberto, limpo. A moto acidentada foi reparada. Tem uns piscas de fabrico próprio, made by Tugas, em material plástico, vulgo gargalo de garrafa e um farolim que aproveitou o restante da garrafa. O Mestre da Ferramenta (o Soeiro) esgotou o stock de fita isoladora e as peças da moto estão todas juntas. Merece um Nobel na arte do improviso.

Só temos 200 km pela frente. De montanha. Partimos. A estrada é boa, as aldeias sucedem-se, as palmeiras nascem junto a cursos de água, começam a aparecer as pedras, começamos a subir, a paisagem muda. Há lojas de pedras e fósseis ao longo da estrada. Arrefece. Subo por entre curvas e mais curvas, meia recta, cotovelo, falésia, frio, sempre a subir, sou ultrapassada por outras motos, surgem estradas lá em baixo, surgem montanhas lá em cima, picos com neve, curvas a subir, o espaço abre-se, a montanha revela-se. Paro. O silêncio é esmagador. Os olhos não abarcam tudo. Respiro fundo. Estou sozinha. Afinal não. Apareceu um marroquino, vindo não sei de onde, quer vender fósseis. Arranco. Continuo a subir. Está muito frio. Há companheiros de viagem parados a tirar fotos. Curva, paisagem, céu, curva, paro para a foto. Por milagre apareceu outro vendedor, desta vez são pedras coloridas. Continuo a subir. Estou quase no topo do mundo. Estou gelada. Há farrapos de neve espalhados pelo caminho. Mas o dia está lindo.









Há uma aldeia lá ao longe. O pessoal parou para almoçar. Surpresa, temos pic-nic. Por entre a confusão de malas da carrinha aparecem caixas cheias de comida. Ocupámos um restaurante. Uns assavam chouriços, outros preparavam belos cachorros cheios de ketchup, outros circulavam com pedaços de presunto, é um banquete à portuguesa. Não falta a pinga nacional nem os berbéres que sabem do Europeu de futebol e conhecem o Figo.


Acabado o repasto, estômago confortado, começamos a descer a montanha. As curvas sucedem-se e começam a intervalar com pedaços de rectas, está menos frio. Das pedras nasce uma vegetação escassa, passamos por aldeias encavalitadas pelas encostas, aparecem de novo as palmeiras. A estrada abre-se, sinto o calor a aquecer as mãos, a montanha ficou para trás. Imponente.


Estamos muito perto de Ouarzazate. Está muito calor. De repente parece que entrámos num forno. Paramos para visitar os estúdios de cinema. Todos de manga curta e óculos de sol lá vamos nós passear entre o Egipto e a Galileia, entre os 10 mandamentos e o Gladiador, breve passagem por Roma, entre cenários grandiosos feitos de madeira e serapilheira, forrados a estuque a imitar pedra e suportados por estacas. Fantástico como nos filmes parece tudo tão real.



Finalmente no Hotel, a piscina chama por nós. Até parece que entrámos noutra dimensão. Ainda hoje de manhã pensei se teria roupa suficiente para o frio que sentia. À noite jantámos ao som de música local, tambores marroquinos e gritos do deserto, danças berbéres e bailarinas lusas, num convívio divertido proporcionado pelos nossos simpáticos patrocinadores.


O despertar foi pacífico. Hoje são apenas 400 km. De deserto, de estradões, de rectas. Ainda temos uma centena de km de montanha mas, depois do dia de ontem, até parece tudo plano. Finalmente o deserto de pedra. Grande, vasto, a perder de vista, no horizonte uma planície fantástica, cheia de pedra, com tufos de arbustos aqui e ali, sinto-me tão pequenina. Kms e mais kms sem vivalma, pequenas aldeias desertas, estrada a perder de vista, rectilínea, com torreões a ladear edificados no meio do nada.




De vez em quando paramos para respirar aquela imensidão, para tirar fotos, para descansar as costas. Pensamos que estamos sozinhos mas não. Vindos não sei de onde aparecem crianças, muitas crianças, meninas com longos trajes carregadas com sacos cheios de pasto, rapazes a pedir moedas. Afinal o deserto não é deserto. O sol queima, o vento começa a soprar, lá ao longe está tudo escuro. Noto pequenos remoinhos, parecem tornados miniatura. O vento sopra mais, levanta a areia, as motos são empurradas, a areia entra por todo o lado. Umas dezenas de kms sob um temporal intenso, desta vez diferente, desta vez atravessámos uma tempestade de areia. Continuo a seguir a moto da frente até acabar a cortina de vento e areia. Parou tão de repente como apareceu. O sol brilha de novo, a estrada continua recta, a paisagem é de pedras, as montanhas lá ao fundo foram cortadas pelo cimo, parecem rectângulos gigantes, há dromedários a pastar perto da estrada.


Ao pôr-do-sol chegámos a Erfoud, uma pequena cidade no meio do nada, com deserto de pedra de um lado e as grandes dunas do outro. O contraste é fantástico. Parece que traçaram uma linha imaginária que divide a pedra e a areia. O Hotel é vermelho vivo, antigo, tem músicos à porta. Ao jantar a mesa do bufet não tinha fim, a comida é deliciosa. Reunimos para combinar o programa para o dia seguinte, em volta de uma ginjinha com que a Maria Rosa nos presenteou. Animada e satisfeita, dormi a sonhar com areia.


É o quinto dia de viagem mas vai ser um dia de descanso. Acordo muito cedo, quero ver o nascer do sol. Na varanda do quarto a vista perde-se. O sol aparece devagarinho, as sombras transformam-se em luz, a paisagem assume toda a paleta de amarelos e vermelhos. Parece outro planeta.

Não sou a única a acordar cedo. Os meus companheiros de viagem já circulam por entre as motos, estão prontos para fazer as pistas do deserto. Vamos embora temos de aproveitar o dia. Uns kms fora de Erfoud e entramos numa pista sem fim. A terra está pisada, tem pequenas pedras roladas, está marcada com pequenas estacas, partes da pista desapareceram, o truque é olhar para longe e tentar adivinhar o percurso. Há que ter atenção, a areia intervala com a pedra, as motos derrapam, alguns caem, ninguém desiste.


Passeámos por vários quilómetros, encontrámos mais aventureiros, encontrámos nómadas, hotéis no meio do nada, tendas e dromedários. Nestes sim, nestes vamos para o meio das dunas. A paisagem de areia é imensa, as dunas não têm fim. O meu mundo transitável acaba aqui.


Cansados, satisfeitos e corados do sol, regressámos ao hotel para jantar. O dia foi fantástico. Nem quero pensar que amanhã começamos a viagem de regresso.







O regresso

Alvorada às seis da manhã. Hoje vai ser duro. Temos cerca de 750 km até Tanger por entre deserto e montanha, por entre vilas e aldeias. O tempo está claro, o sol brilha, partimos em direcção ao Norte. Após umas horas de estrada aberta, de pedra e imensidão, começamos a subir, começam as curvas, o céu fica cinzento, o vento aparece, as subidas intervalam com grandes rectas, estamos a viajar a cerca de mil metros de altitude e continuamos a subir. Estamos a passar o médio Atlas em direcção à floresta dos Cedros.

A nossa amiga chuva aparece de novo, bate forte, é fria. Começo a ficar gelada, as mãos já mexem mal, a estrada é um circuito por entre enormes árvores. O tempo está carregado, cinzento, o verde-escuro das árvores mal se nota. A chuva transforma-se em neve, a paisagem está cheia de bolinhas brancas, fica tudo branco, o vento sopra com força, estou congelada. Estamos a chegar ao cimo, talvez do outro lado o sol brilhe.



A neve abrandou um pouco, vamos começar a descer. O branco fica mais branco, não se vê nada. Instala-se uma espessa cortina de nevoeiro, não vejo a estrada, não vejo paisagem, só vejo os piscas da moto da frente. Não os posso perder, não dá para pensar, é seguir em frente e esperar que isto acabe.


Finalmente saímos do branco. De repente o mundo aparece de novo, cinzento mas real. Paramos para respirar, para descansar, estou congelada, as mãos doem, os pés nem os sinto. Já fizemos 400 km. Falta pouco. Mais quatro horas e chegamos ao destino.


Conseguimos chegar a Tanger ao pôr-do-sol. Rapidamente devorei um jantar bem quentinho e aterrei na cama, exausta.


Acordámos cedo de novo. Dormir é coisa rara nesta viagem. Temos de apanhar o primeiro barco da manhã senão temos o regresso comprometido. Às cinco da manhã já íamos a caminho do porto, de volta para o barco, de volta para a Europa. Ao nascer do sol estamos em Tarifa. Nem acredito que está a acabar. O grupo divide-se, começam as despedidas. Uns voltam pelo Rosal, outros pelo Algarve. A partida é difícil, sinto que todos queremos voltar para trás de novo.


Meia atordoada, sigo os meus companheiros. A estrada já não tem vida, a paisagem já não é amarela, já não cheira a especiarias. Começa a chover de novo, chove até ao Alentejo. Já nem sinto, já não me incomoda, agora quero chegar a casa, passar as fotos para o PC e tentar prolongar mais um pouco esta aventura, reviver as brincadeiras, a camaradagem, as peripécias de Marrocos.


Um sonho de viagem, escrita em duas páginas mas com muito, muito mais recordações gravadas na memória e nos sentidos. Vou andar com sorriso nos lábios por muito tempo. Obrigada aos meus companheiros da Comunidade BMWCKLT e aos restantes participantes. Obrigada à Maria Rosa e ao Eng. Martins de Carvalho por terem organizado este magnífico passeio. Senti-me segura, senti-me protegida, sinto-me bem!

 


 
 

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